A Bienal do Livro Rio entrou com pedido de mandado de segurança preventivo no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, na sexta-feira (6/9), a fim de garantir o pleno funcionamento do evento, em ação acolhida no final da tarde de sexta (06/09), a dois dias do final do evento. A nota oficial divulgada invoca o direito dos expositores de comercializar obras literárias sobre as mais diversas temáticas – como prevê a legislação brasileira. "Consagrada como o maior evento literário do país, a Bienal do Livro mantém sua programação para o fim de semana, dando voz a todos os públicos, sem distinção, como uma democracia deve ser. Este é um festival plural, onde todos são bem-vindos e estão representados.
Entre sexta (6/9) e domingo (8/9) – último dia de evento – a Bienal recebe autores, artistas, pensadores e acadêmicos do Brasil e exterior para participar de 39 painéis sobre os mais variados temas, como fake News, felicidade, ciências, maternidade, teatro, literatura trans, LGBTQA+ e muito mais. Além de todo um pavilhão dedicado às crianças, com contação de histórias, lançamento de livros e espetáculos circenses," concluía o documento.
A ação judicial veio em resposta à movimentação de funcionários não identificados da secretaria de Odem Pública percorrendo os estandes da feira, no Riocentro, alegadamente à procura de material impróprio, conforme o relato de expositores, logo pela manhã. Atendiam, alegadamente, à determinação do prefeito do Rio, Marcelo Crivella, que divulgara um vídeo pelo Twitter: "Pessoal, precisamos proteger as nossas crianças. Por isso, determinamos que os organizadores da Bienal recolhessem os livros com conteúdos impróprios para menores. Não é correto que elas tenham acesso precoce a assuntos que não estão de acordo com suas idades", declarava o prefeito, conforme o texto transcrito que acompanhava o vídeo na rede social.
O vídeo usava cenas de Cruzada Das Crianças, uma graphic novel (álbum de história em quadrinhos, com mais consumidores entre adultos do que entre adolescentes, até pelo preço) editada em 2016. Disponíveis apenas em saldões e estandes de sebos (uma espécie de brechós, só que de livros e revistas), os exemplares remanescentes esgotaram-se em menos de uma hora, depois que o tuíte do prefeito viralizou. Os comentários à postagem do prefeito, na maioria, ironizavam a iniciativa,o que ajuda a explicar porque #censuranuncamais rapidamente se tornou um dos trend topics do Twitter no Rio e no Brasil.
Em meio a comentários saudando o prefeito por se posicionar à direita, as críticas predominavam. Xenotar lembrava um livro em que práticas heterodoxas aos olhos do prefeito e seus adeptos se multiplicavam: "Tem um outro livro que é pior, as filhas embebedam o pai e transam com ele engravidando. E tem um filho que se aproveita do próprio pai. E um rei que declama salmos pro namorado. É uma tal de bíblia. Precisamos proteger as crianças, recolha todas as bíblias, prefeito." Luba, por sua vez, questionava: "Você vai mandar recolher livros que mostram beijos entre homens e mulheres, também? Senão esse papo de "proteger de conteúdos impróprios" é um blá blá blá mais furado que seu governo, só pra mascarar seu preconceito hediondo."
Na sequência, @João Gabriel punha o dedo na ferida: "Vai ter que embalar tudo em saco preto???". Listava, abaixo, em desenhos multicoloridos, os beijos entre a Branca de Neve, a Cinderela e a Bela Adormecida, cada uma delas com o respectivo Príncipe Encantado. @Imaginago seguia na mesma toada: Bom dia senhor prefeito!! Gostaria de complementar a denúncia!! Há muito mais para censurar!! O senhor pretende recolher esses também, correto??? Ou "conteúdo impróprio" é só o caso de dois homens se relacionando?. Abaixo, os beijos entre Batman e Mulher-Gato, Peter Parker (sem a máscara de Homem-Aranha) e Mary Jane, Super-Homem e Lois Lane. Todos de obras permitidas para menores.
A Editora e Livraria Da Vinci, das primeiras a reagir ao gesto do prefeito, publicou em seu perfil no instagram obras do Marques de Sade e de Gustave Flaubert (Madame Bovary, que traía o marido para espantar o tédio da vida provinciana e ilustrar o vazio de certa elite francesa no século XIX). O texto, curto e direto, dava o tom da reação que se seguiria: "Funcionários não identificados percorrem os estandes avisando que a Secretaria de Ordem Pública fará uma "vistoria" geral para identificar qualquer livro que contenha cenas "eróticas ou homossexuais" e não esteja lacrado e sinalizado como "conteúdo impróprio". A Leonardo da Vinci está nos estandes da Todavia e da Penguin e essa é a nossa exposição agora (imagens de livros como Bom Crioulo, que conta a história de um marinheiro homossexual cearense, ou autores como Paulo Freire). em protesto à tentativa de naturalização da censura que assistimos no país. Nosso absoluto repúdio a mais essa violência," concluía o texto, em termos enfáticos.
Passando das páginas da Cultura para as da Política, o isolamento de Marcelo Crivella se repetia: A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro se somou à reação dos organizadores do evento e divulgou nota anunciando a disposição de reforçar o pedido da Bienal na Justiça: "A DPRJ vem a público manifestar seu apoio à Bienal do Livro e informa que ingressará com pedido de amicus curiae (parte interessada) no mandado de segurança preventivo impetrado pelos organizadores do evento junto ao Tribunal de Justiça. É inadmissível que, em pleno estado democrático de direito, obras literárias sejam censuradas e atacadas. A Defensoria Pública reafirma seu compromisso com a defesa da democracia e da liberdade de expressão," encerra a nota, que veio a público no final da tarde de sexta-feira (6/09).
Em paralelo, a Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Estado do Rio de Janeiro, e o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) divulgaram nota dura contra o que classificaram de ato arbitrário e mercedor de repúdio praticado pela Prefeitura do Rio de Janeiro na Bienal do Livro na tarde desta sexta, dia 6. "A tentativa de recolhimento da obra em quadrinhos “Vingadores: A cruzada das crianças”, sob o argumento de que violaria o Estatuto da Criança e do Adolescente, não se justifica, já que inexiste na capa da publicação qualquer reprodução de ato obsceno, nudez ou pornografia. O conteúdo da obra tampouco infringe as normas vigentes, visto que as famílias homoafetivas são reconhecidas legalmente no Brasil desde 2011, estando alinhadas com as garantias constitucionais do cidadão.
A OAB/RJ tem em seus pilares a defesa da liberdade de expressão, de pensamento e do pleno exercício da informação, especialmente traduzido na atividade da livre veiculação de livros, revistas, jornais e de todo meio de manifestação escrita legítima, conforme asseguram os direitos e garantias fundamentais esculpidos no artigo 5º, IV, VIII, IX, XIII e XIV, combinado com o artigo 220 e seus parágrafos, da Constituição Federal.
Vale salientar, ainda, que não cabe ao Poder Executivo municipal, e, sim, à Justiça da Infância e da Juventude, a ação contra eventuais desrespeitos ao Estatuto da Criança e do Adolescente.
A postura da Prefeitura do Rio, portanto, revela-se como ato de força e censura, que deve ser repelido. Vigilante à efetiva legalidade dos atos das autoridades públicas, a OAB/RJ reafirma seu papel na preservação do Estado democrático de Direito e, caso necessário, recorrerá às medidas cabíveis com vista à defesa da sociedade fluminense.
O vereador Tarcísio Motta, do PSOL, por sua vez, anunciava a disposição de engrossar as fileiras do questionamento judicial do Prefeito: "Acabamos de protocolar uma representação no MP contra a sua ação arbitrária e homofóbica. Queremos que se investiguem os indícios de improbidade administrativa, censura prévia, violação do princípio constitucional da não discriminação e do direito à liberdade de expressão por vocês". Com seu senso de humor peculiar, e livres das formalidades que os mandatos formais impõem a entidades e políticos, internautas se manifestaram na mesma direção, mas o pé no acelerador: "Bangtan Mozão on BTS WORLD
Em resposta a
@MCrivella
Você tem que proteger as crianças da nossa cidade da violencia.. da bala perdida todo dia. Toma vergonha nessa cara e vai trabalhar." Alexandre Andrada,@AFS_Andrada:Boa prefeito!
Agora só falta fazer com que os menores do RJ não tenham acesso a outras coisas impróprias, como pobreza, cadáveres na porta de casa, caveirão, esgoto a céu aberto, tráfico de drogas, milícia, pastor canalha que diz que o Espírito Santo quer $, não palmas......." Ou, como resumiu @joaofcr :Crivella: Quando vão te recolher de prefeitura em prol das crianças do RJ?