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O corpo sem máscaras: “Touro (Bull)" no Sesc Pulsar

Dança Além das Fronteiras, Por Cláudio Serra, Professor da Escola de Teatro da UniRio

Em 09/11/2024 às 12:43:09

No palco do Mezanino do Sesc Copacabana, uma grande lona crua cobre o cenário, sobre o qual está Valéria Pinheiro. A lona envolve sua cintura, remetendo ao arquétipo feminino da gueixa. Em seguida, a lona lhe cobre a cabeça, remetendo ao arquétipo feminino de Maria. A grande lona vai sendo “tragada” para o fundo do palco pelo corpo coberto de Jeferson Vieira. Do grande volume do tecido no chão acontece uma espécie de parto: Jeferson, com uma máscara de palhaço da festa de Reis, consegue sair dali de dentro, como um corpo no estado larvário.

Esses são alguns dos elementos do início do espetáculo "Touro (Bull)". Vejamos alguns aspectos de maneira um pouco mais detalhada.


Casco contra a madeira

As danças que sapateiam, de uma forma ou de outra, remetem ao som da pata de um animal. Em contraponto a esse peso da matéria, o balé clássico tem um treinamento intenso, visando tornar o corpo mais leve, ao ponto de alguns movimentos não parecerem regidos pela lei da gravidade. As manifestações corporais populares vão de encontro a essa vontade idealizante do balé clássico: ao contrário do movimento na direção do etéreo, elas mantêm uma relação com a terra.

É com a força do pé na terra que essas danças se inserem em uma tradição mais antiga do que o que ficou conhecido como “clássico”. Quando o chão é de madeira, as danças que se baseiam na pisada dialogam com a patada dos animais porque o som se assemelha ao casco da pata no chão. Em "Touro (Bull)", o título já assenta essa relação: há animalidade em cena e, portanto, há humanidade.

Após uma relampejada vermelha (prenúncio da Iansã que chegará), Valéria Pinheiro sai de baixo da lona, produzindo som de pata com as mãos e com os pés. Está “de quatro patas”. Sua dança de mãos e pés produz música ao vivo, que harmoniza com o som gravado, manuseado no computador por Jeferson Vieira.


Ritual e distanciamento

Quando percebo uma tradição de cultura popular no corpo do espetáculo “Touro (Bull)”, não me refiro a um acontecimento coletivo no qual a diferença entre palco e plateia se dissolve inteiramente no jogo. Aqui, há certa solenidade, há certo ritual. O distanciamento inicial é importante para tirar o espectador da linguagem cotidiana (que, inevitavelmente, chega com ele no teatro).

Durante um tempo, Valéria fala apenas em iorubá, sem tradução. O espectador vai sendo conduzido a outro tipo de compreensão e de troca. Quando a palavra começa a vir em português, ela vem extremamente poética, o que não é um problema para a compreensão do espectador por que ele já foi inserido no espaço ritualístico.

É o estabelecimento da linguagem não-realista que cria um espaço de mistura de referências tão plural. Há sertão, há Idade Média, há candomblé, há Reisado, há Oriente.

Cangaceiro-quixote-samurai

Nesse sentido, a forma que o figurino e o corpo constroem em cena revela o arquétipo da armadura: os que vivem no fio dialético entre luta violenta e poesia frágil. Compreendo que está sendo discutida a ancestralidade feminina, mas a forma que se revela em cena é a dos samurais e a de Quixote. Os samurais de Kurosawa, cobertos de lama, lutando bravamente pela vida, evidenciam a vulnerabilidade do corpo humano. Quixote, lutando contra moinhos gigantes, nos revela um corpo violentado pela realidade, mas vitorioso em sua trajetória pela utopia.

Esses são símbolos masculinos, mas eles se revelam mais do que, por exemplo, Joana D’Arc, que também é reconhecida pela armadura. O chapéu com 4 chifres, as espadas sendo desembainhadas da cintura, as estampas e aplicações do tecido em patchwork remetem ora ao barroco espanhol, ora à Asia. E isso funciona muito bem com a relação entre o touro e Oyá. O patchwork é o redimensionamento, no figurino, da costura de referências da dramaturgia.

Para falar da luta feroz da ancestralidade feminina do Nordeste (em especial, nesse espetáculo, da região do Cariri), é importante combinar os corpos de mulheres e homens dentro da armadura.

Feridas e brincantes

Se, anteriormente, mencionei o distanciamento do ritual, é preciso destacar o aspecto da brincadeira e da alegria. Valéria traz um gestual de mãos e braços que remete à abertura para a plateia: as mãos fazem um movimento circular uma sobre a outra, como que enrolando uma energia, para, em seguida, abrir o peito e os braços na direção do espectador. É uma atitude de desarmamento, de convite. O gesto ganha força pelo contraste com a dor da ferida.

O espectador vê aquela mulher-touro carregando seu carro-de-boi, vigorosa. Repentinamente, porém, há um ferimento, uma dor que a leva ao chão. Tal violência não fica apenas no terreno da ficção, um vídeo é projetado com imagens de uma operação, vemos a intervenção de ferramentas nas carnes de uma pessoa. Isso parece se conectar com uma informação escrita no programa da peça: “Valéria hoje é uma mulher com prótese total de quadril”. Há, então, no palco, uma luta histórica da mulher nordestina e uma luta pessoal da artista.

O recurso do vídeo autobiográfico tem sido muito utilizado na última década. É recorrente ver espetáculos com imagens de partos, ou exames, ou cirurgias que citam uma situação intensa na biografia do artista. No caso de “Touro (Bull)” isso não fica desgastado porque, além de ser bastante rápido, o espectador se conecta estética e afetivamente com o corpo em cena, com sua vulnerabilidade e com sua resistência. As “patadas” no chão produzem a imagem e o som do “eu não me entrego não”.

No entanto, mais importante do que a representação da dor na biografia, é a transformação da violência em alegria. A cultura popular sabe, mais do que ninguém, operar essa transformação com a figura do brincante. No fim das contas, pode haver boi, pode haver luta, pode haver o feminino, mas o brincante sempre toma nas mãos a energia das manifestações cênicas que lhe fazem apelo: a alegria da criança é o que não pode faltar.

Espacialmente, isso se materializa na lona estampada com flores coloridas de paetê. Todo o espaço estava homogeneamente preenchido de símbolos arcaicos: o chão lixado que remetia ao betume e à ferrugem do carro-de-boi, a lona crua, a muleta, as espadas, balde e bacia de ferro, o tambor. Uma nova camada perceptiva se revela quando o espectador vê que, do lado avesso da lona, há flores brilhosas e coloridas: é a brincadeira que ganha a cena. Essa leveza também aparece no gesto de Jeferson Vieira, ao abandonar a pesada corrente de ferro dentro do balde.

O grande tecido estampado possui ganchos na extremidade alta, o que cria a expectativa de que ele será içado e se tornará a rotunda do teatro. Isso não acontece, ele fica no chão. Como a plateia do Mezanino é em arquibancada, a visão do espectador prioriza o chão, quer dizer, vemos perfeitamente os detalhes coloridos e brilhosos. Uma apoteose de alegria e brincadeira depois da dor e da luta.

O corpo sem máscaras

Acaso o leitor tenha chegado até aqui imaginando uma bailarina de 20 e poucos anos, sugiro que releia o texto com a seguinte informação: trata-se de uma sexagenária em cena. Valéria Pinheiro traz seu gesto, seu corpo, sua máscara de mulher de mais de 60 anos para a dança, o canto, a fala. Evidentemente, a presença do corpo jovem de Jeferson Vieira valoriza o corpo sem máscaras de Valéria: é tudo de verdade. Ela sapateia na maior parte do tempo, arrasta-se, passa por buracos, sobe e desce o carro-de-boi, carrega-o, etc...

Se eu pudesse desejar francamente algo para cada artista da cena, seria manter a capacidade de troca com a plateia para além dos 60, 70, 80, 90 anos de idade. Ver um corpo tão vigoroso em cena é necessário.

Vejam “Touro (Bull)” no Sesc Copa até 17 de novembro!

Ficha técnica

Interprete Criadora: Valéria Pinheiro

Ator Brincante: Jeferson Vieira

Direção: Vinicio de Oliveira

Direção de Arte: Rodrigo Frota

Direção Musical: Wesley Santana

Fotografia: Marcelo Paes de Carvalho

Design de Luz: Walter Façanha

Adaptação de Luz RJ: Fernanda Mantovani

Direção de produção RJ: Ronaldo Tasso

Realização: ABCVATA

Projeto contemplado pelo Sesc Pulsar

SERVIÇO:

Touro{Bull}

Mezanino do Sesc Copacabana

Até 17 de novembro

De quinta a domingo, às 20h30m

Rua Domingos Ferreira, 160

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