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Barco vazio

Folhas Soltas, Por Marcos Vinicius Cabral, Jornalista

Em 06/01/2024 às 07:21:23

Há 730 dias que estou recluso, deitado no fundo de um barco vazio e, introspectivo, no meio de um mar chamado frustração. De olhos fechados, não observo nada ao redor e nem me vejo. Apesar das ondas molharem as pontas dos meus dedos das mãos a fim de provocar em mim a desatenção que o destino quer, permaneço intocável e insensível. E continuo de olhos fechados! Mas perco a beleza da vida quando não vejo o céu azul com as nuvens parecidas com algodão, não sinto o calor do sol que esquenta meu corpo, e não ouço o ruído das asas das gaivotas que ensaiam o balé contumaz que nada mais é, para quem aprecia com moderação as belezas da vida, do que a personificação de um voo para um lugar distante.

A cena, por mais absurda que pareça, me faz conviver com o som imperturbável do silêncio. E é em cada um destes sons, que sinto a presença e a ausência que meu pai faz.

Meu pai nunca gostou do nome de batismo e sempre que perguntavam "como o senhor se chama?", ele desconversava e respondia "José". Na verdade, era o sobrenome dele. Mas o ele gostava de verdade era ser chamado pelo apelido de "Alicate" que, segundo ele mesmo, foi herança dos tempos de quartel, quando vivia indo buscar alicate na oficina a pedido dos sargentos, tenentes e coronéis. Daí, de tanto pegar alicate para os superiores, transformou-se em um e carregou a alcunha até a nefasta tarde do dia 18 de janeiro de 2022, último dia de vida dele.

Mas a ausência de Alicate na minha vida me recoloca, sempre que lembro dele e dos entreveros que tivemos na difícil e conturbada relação pai e filho, no fundo daquele barco. É lá, que vira e mexe, estou com os olhos fechados, alisando a 'testa' do mar e lembrando dos momentos que passei ao lado dele.

Alicate viveu a vida com a tranquilidade de quem dirigiu por muito tempo um táxi. Acreditava em Deus e não deixava o medo de morrer ser maior do que as risadas que deu com muitos outros taxistas nos PAs por onde deixou saudades. Era alternância nas pequenas coisas. Vivia o opróbrio com pombos, detestados por ele, mas era capaz de jogar pipocas para as desprezadas aves do quintal de casa e, com esta atitude, tornava-se um zeloso columbófilo para quem via a cena. Não se preocupava em cuidar da saúde e acabou surpreendido por um infarto agudo do miocárdio.

Destemido, às vezes, confesso, Alicate era engraçado. Inteligente demais. O que se colocava as mãos para fazer, executava com a perfeição da falta cobrada por Zico no ângulo. Ou melhor, cobrada por Roberto Dinamite, ídolo dele, já que era vascaíno por convicção.

Mas no próximo dia 18 de janeiro, o luto pelo desaparecimento físico do meu pai completa dois anos. São janeiros que lembro sempre, pois Deus me trouxe Gabrielle, minha adorável filha, e levou meu pai, lembrado e amado por todos. Ironias de um destino que Deus, sabe-se lá por qual motivo, permitiu acontecer. Não reclamo. Nem posso. Resta-me aceitar.

Mas quando Deus percebe minha aflição e nota tristeza em meu olhar, permite que sonhe com meu pai. Até certo ponto, isto desacelera meu coração, conforta meu espírito, e faz seguir em frente. No entanto, quando o efeito do conjunto de imagens, de pensamentos ou de fantasias que se apresentam à mente durante o sono acaba com o nascer do sol na manhã seguinte, caminho lentamente para o cais, retiro a corda do barco, deito no fundo dele, fecho os olhos e vou contemplar a beleza do vazio das coisas que me circundam.

É ali, no silêncio das minhas ações que meu pai - que ironicamente preferia o som das coisas - está. Isto é o suficiente. E é, não tenho dúvidas, um bálsamo para essa dor aqui dentro de mim que se chama saudade.

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