Quer falar sobre as cores dos peixes que admirei lá do fundo do mar? Mergulhe como eu mergulhei, e assim entenderás o belo que me permiti enxergar…
Primeiro, impossível não falar sobre o Edital Sesc Pulsar: é admirável a competência dos curadores. Mesmo diante de uma concorrência desleal, eles enxergam o que realmente é bom.
Por que me refiro a uma concorrência desleal? Porque nas grandes cidades ainda temos críticos teatrais, o que em Curitiba, por exemplo, não tem. E para quem não sabe, na plataforma de inscrição do Sesc existe um espaço para elas. E assim muitas cias já perdem pontos, sem contar as premiações, que também em muitos estados não existem. É o caso do estado do Rio Grande do Norte. Mas permito-me dizer, o que é bom, é bom, e se tem gente que entende o que é bom, o bom há de ser reconhecido. Obrigada, Sesc!
"Cão Vadio", que experimento magnífico, e penso que isso seria suficiente. No entanto, é justo que, da cidade do Rio de Janeiro, a Cia Ave Lola leve de lembrança uma crítica extensa, merecidamente.
Fui orientada a assistir à obra pelo colega de trabalho Gilberto Bartholo, que em sua viagem ao Festival de Curitiba deslumbrou-se com a Ave Lola. E lógico que eu segui o conselho do mestre!
Alguns artistas sabem que nem sempre concordo com os olhares dos demais críticos. Existem divergências, porque nem sempre sou atravessada por algumas obras. Sigo, de fato, o que sinto, me nego a escrever sobre o que não me convenceu.
O cabaré sempre me chamou a atenção. Durante a pandemia aprofundei-me em cursos sobre o tema. Estive em cursos da Casa Selvática de São Paulo, com o querido Ricardo Momo, que reconheço como um doutor no assunto e outro na Uni-Rio com a catedrática Christina Streva. Esses profissionais me trouxeram informações riquíssimas e me fizeram entender a essência dos artistas do cabaré. Não posso esquecer do "Cabaré Incoerente", que tive a honra de assistir em debates e oficinas tão potentes quanto as demais já citadas.
Ao assistir "Cão Vadio", tive uma sensação de estar diante de um dos cabarés mais importantes da história, porque havia nesses artistas do Ave Lola um força incomum, além da beleza performática. Eu tive a sensação que esses artistas de 2023 estavam possuídos por artistas que Hitler mandou para os campos de concentração. Sim, foi exatamente isso que o monstro nazista fez, o que não adiantou muito, pelo visto, pois a arte não morre.
O espetáculo apresenta músicas de diversas fontes culturais, e isso é tão precioso, tão belo, tão universal, que arrebata o coração dos espectadores.
Não se trata de uma obra qualquer, há fundos de pesquisa envolvidos, isso é nítido. A música ao vivo é inspirada em canções da América Latina. As referências dramatúrgicas vão da literatura de Vargas Llosa, García Márquez e Borges, além de Shakespeare e Tchekov, às obras do artista visual Antonio Berni e notícias de jornais latino-americanos.
Paródias ou cenas são costuradas magnificamente por Ana Rosa - a chave mestra da cia. Ela, anacronicamente, conta a história de cada personagem com riqueza de detalhes belíssimos. Uma das quais me chamaram a atenção foi da artista Olga Nenevê, que interpretava um cão, de quatro.
A transformação de uma mãe que perde a filha, com seus uivos de dor, se perpetuam, e a transformam em um cachorro. Foi a loucura mais sã que assisti na minha vida. A atriz soube interpretar com magnitude este pesadelo de uma mulher que perde seu filho, a qual conheço de perto. Foi em 1987 que meu irmão faleceu e vi minha mãe aos prantos, uivando por meses madrugada adentro. Emocionante a cena, como a história daquela personagem foi desvendada, contada com poesia.
A direção artística também é assinada por Rosa, e claro, que como ela mesmo relata, sempre protegida por seus artistas, não tinha como dar errado. Ela conta com o abraço coletivo, ela não está só, construiu sua obra abraçada aos demais colegas.
O figurino do espetáculo é do Eduardo Giacomini, que trouxe cor, criatividade e sensualidade equilibrada, sem nenhum tipo de apelação. Lindo, lindo!
E falando nele, assume também o cenário, um tanto quanto precário, como todo cabaré deve ser! Ele soube trazer a realidade dos espaços. Quando digo "precário", não falo do trabalho do profissional, longe disso, mas a precariedade do próprio território "Cão Vadio", que acolhe os que fogem, os que “enlouquecem”.
Eduardo assume outra rubrica: ele é um personagem, se não me engano como na realidade, ele é o que comenda o lugar. E em uma das cenas, ele morre, se faz de morto, todos chorosos em seu velório. Inclusive, a atriz Helena Tezza apresenta um choro que alimenta nossas risadas, de tão cretino que é!
Nós, espectadores, ficamos loucos, ensandecidos com a cena, esperando a hora de acabar para aplaudirmos, tamanha beleza cênica que os artistas carregam!
Há musicalidade, há banda ao vivo, banda ou dois artistas que se transformam em uma bela banda! São eles: Arthur Jaime e Breno Monte Serrat, que também assumem a direção musical. E falando em direção musical, quando ouvi de um artista a música "Debaixo D'água", que é belissimamente interpretada por Maria Bethânia, quase tive um gozo cultural. O artista, que levou a canção ao palco, ainda leva o poema com firmeza, sem hesitar. César Matheus é o ator responsável por esse momento único.
Vamos falar de Evandro Santiago.
Se no Rio de Janeiro temos Marcio Nascimento, o melhor artista de teatro de animação, o que já deixei claro, de ser fã número um dos seus trabalho e grata a Deus por fazer parte da geração desse artista, agora tenho ciência que em Curitiba temos Evandro.
Para entender desse trabalho e desses artistas, fiz aulas de teatro de animação, pelo próprio Sesc, com Márcio Nascimento e também com o manipulador de bonecos, o baiano Gil Teixeira, outra sumidade nessa arte.
Evando sabe dominar seus bonecos, dar vida, voz e também os movimentos perfeitos que eles precisam.
Seu olhar mantém-se no boneco, dando a ele a vez de interpretar. O artista entende de cordialidade ao colega de palco, ainda que esse seja totalmente dependente de seus movimentos e som. As triangulações dos seus olhares são seguidos à risca, perfeitamente fiéis ao que se aprende quando se quer trabalhar no teatro de animação.
Em um dos momentos, seu rosto está coberto por uma renda, em tom nude, deixando claro mais uma vez seus conhecimentos.
Tudo no artista é concebido sem arranhões. As expressões faciais, o movimento do corpo, tudo nele resplandece, alcança nossos olhos, nossa atenção, nossa admiração.
Ele é simpático e entende o que é teatro. Esse que nem parece ser seu ofício e sim um momento de lazer, de tamanha graça e leveza que ele apresenta.
Ficará eternizado em minha memória a cena em que ele se transforma em um cavalo e, com a atriz Helena Tezza, galopa. A cena é alimentada pela contra luz do mago Bruel e pelos movimentos marcados da querida Ane Adade, que assina a preparação corporal do espetáculo, dando aos artistas o que precisam para cenas incandescentes como essas.
E os bonecos são confeccionados por quem? Eduardo Giacomini, mais uma vez ele, fazer o quê?
O cara é o cão chupando manga, não tenho outra forma para descrever seus trabalhos, seus feitos…
O realismo fantástico, onde a fantasia, o sonho e a realidade se misturam e trazem uma nova narrativa, está em tudo nessa obra. Também estão nesses bonecos, que embriagam nossos olhos.
Murilo Rubião, o literário brasileiro do realismo fantástico, aplaudiria de pé!
Ailén Roberto já nos leva ao cabaré aonde a política grita! Sim, ela grita, sabe gritar. Sua garganta nos acolhe, nos defende como povo. Se existem almas penas, ou espíritos andantes, as atrizes dos cabarés do passado certamente a assistem e se veem nela.
Marcelo Rodrigues acompanha aquele artista que me nego a escrever o nome mais uma vez, durante todo o espetáculo. Um ator robusto e que me parece no cabaré ter encontrado sua casa.
Regina Bastos é a dramaturga que chega ao território. Suas falas são latentes. A atriz, em sua maturidade, vem com um discurso político belo, principalmente quando chega ao espaço, como Brechet, entre outros que tiveram que se refugiar em algum lugar, fugindo da opressão, perseguição.
E tudo isso acontece com a iluminação de Beto Bruel, que acabou de sair do Centro Cultural do Banco do Brasil. A Bruel apenas uma palavra: que não falte luz, porque é iluminando, ele nos ilumina a alma!
Existem outros nomes, como Mattheus Boeck, que nos recebe com um sorriso nos lábios, existem os nome dos bonecos, que perdem braços e pernas e são reconstruídos no território, assim como fazem conosco ao nos aproximarmos desta obra. Eles nos alimentam de arte, de sonhos. Mais que isso, de deslumbramento. Por um instante, nos fazem esquecer as intempéries da vida!
Como dizia a matriarca dessa loucura, há treze anos: Ave Lola!
Sinopse
Numa viagem ao mundo do realismo fantástico através da linguagem do cabaré, a peça conta a história de um território chamado Cão Vadio, ocupado por personagens que se encontram na borda do mundo, um lugar para onde fugiram, foram levados à força ou carregados pelo vento do deserto.
A peça trata de questões atuais como migração, violência, intolerância e dificuldade de comunicação.
Ficha Técnica
Dramaturgia e direção: Ana Rosa Genari Tezza
Direção musical: Arthur Jaime e Breno Monte Serrat
Elenco: Ailén Roberto, Cesar Matheus, Eduardo Giacomini, Evandro Santiago, Helena Tezza, Marcelo Rodrigues, Olga Nenevê e Regina Bastos
Músicos: Arthur Jaime e Breno Monte Serrat
Preparadora vocal: Babaya Morais e Paola Pagnosi
Preparadora corporal: Ane Adade
Iluminação: Beto Bruel e Rodrigo Ziolkowski
Figurino: Eduardo Giacomini
Assistente de figurino: Helena Tezza
Cenografia e adereços de cenário: Eduardo Giacomini
Confecção de bonecos e adereços: Eduardo Santos
Cenotécnicos: Fabiano Hoffmann, Anderson Purcotes Quinsler e Rene Augusto Barbosa
Direção de produção: Dara van Doorn e Elza Forte da Silva Carneiro
Produtor: Carlos Becker
Produção: Entre Mundos Produções Artísticas
Produção executiva: Laura Tezza
Realização: Sesc Rio e Ave Lola e as Meninas Produções Artísticas
Depoimentos da dramaturga
https://www.prcultura.pr.gov.br/Pagina/dramaturgia-do-Cao-Vadio
Serviço
Mezanino do Sesc Copacabana
Rua Domingos Ferreira, 160, Copacabana, RJ Tel: (21) 2547-0156
De 5ª a domingo, sempre às 20h30
Até 30 de abril