Teatro cheio, no meio de um feriado prolongado, tempo chuvoso. Isso é a resposta de um trabalho feito com devoção ao melhor que temos da literatura brasileira que, se juntando a um nível avançado de teatro, não poderia ter um resultado diferente.
Quando o espetáculo termina, Gilson me pergunta: e aí Paty, o que você achou?
Respondo aqui: quem sou eu na fila do pão? Ora, bolas! Os caras se debruçam em um livro de 594 páginas, como eu poderia opinar?!
Acompanhei o começo dessa história, onde - durante a pandemia -, leituras eram feitas através das plataformas virtuais. Gilson e Amir Haddad discutiam sobre o texto, sobre o que deveria ser levado, tudo com simplicidade, espontaneidade e verdade, uma delícia de se ver.
Com a volta ao presencial, a peça foi montada. Claro que ficou tudo tão inquestionavelmente bom que Gilson foi indicado ao Prêmio Shell de teatro, em mais de uma categoria. Não podia ser diferente!
A peça, em diversas apresentações, teve bilheteria esgotada. Este fato, para os dias atuais, aonde o teatro perde público, é um feito extraordinário. A peça não teve aporte financeiro, mas não se pode dizer que a precariedade permeou as apresentações, não mesmo, pois o que tinha era suficientemente bom para aqueles que assistiram e assistem.
O primeiro espetáculo dessa trilogia é sobre os amores de Riobaldo, o personagem do escritor Guimarães Rosa; o segundo já fala sobre o capiroto, "O Diabo na Rua no Meio do Redemunho". Uma maravilha de texto, os recortes foram feitos com precisão, nota-se a técnica. Não tem uma palavra que não tenha sido de cunho próprio dos artistas envolvidos, o que acho respeitoso a uma das maiores obras de nossa literatura brasileira.
A narrativa do artista em palco é tão cativante que nos tornamos reféns. Quando menos se espera, a peça acabou. Porque é boa, porque o tempo voa. E fica a pergunta: será que foi o texto ou o ator, ou os dois juntos? Será que era esse Riobaldo que Rosa esperava no futuro vindouro? Parece que sim. Se não, certamente ele iria deliciar-se nesse Riobaldo do artista Gilson Barros.
O ator me levou até o meu passado. Sou de família nordestina e percebi que fiquei como naquele tempo, embriagada com a prosa do personagem no qual me afaguei na memória, aonde meus tios nordestinos contavam suas histórias enquanto descascavam um balaio de laranja-pêra.
Gilson tem esse poder: de saber aproximar o público. Ele sabe e entende o tamanho da ferramenta que carrega para executar seu trabalho.
O desenho de luz é do Simoni, que dispensa elogios. O artista entendeu a proposta da obra e não trouxe nenhum tipo de efeitos. Certíssimo! O que a iluminação deixa em evidência é o sol a pino, o que também é uma ideia bem-vinda diante da obra de Guimarães Rosa. O figurino é de Karlla de Luca. Se minha memória não falha, ela fez "Pinóquio", em que o próprio Gilson interpretou Geppetto, o avô do boneco de pau. Karlla fez um belo trabalho na obra infantil e pode-se dizer que, dessa vez, contou com a sobriedade e elegância: a indumentária conta com uma camisa de botão, de linho.
A obra não conta com patrocínio. É na raça, na coragem mesmo, muitas vezes na amizade também, para sorte daqueles que gostam de um teatro de excelência.
Sabemos que o bem e o mal são antagônicos, mas de alguma forma tendenciamos a torcer, numa dosagem maior, para o bem. É assim o espetáculo também: por mais que se reconheça esse fio condutor da literatura, o próprio Riobaldo reconhece a importância do bem, ainda que desconstrua o próprio Deus. Sensacional!
Maria Mutema e outros personagens são trazidos à narrativa, o que a torna mais gostosa e também risível, pois a forma que é contada nos leva a pitorescas risadas.
Em uma das cenas, o ator faz uma narrativa ao lado de Diadorim, ambos montando seus cavalos. Nesse momento, a forma que ele conta é tão bem feita que conseguimos imaginar o cavalo inquieto, torcendo o pescoço e Riobaldo tentando espantar o mal com as mãos. Algo belo, que nos leva sertão adentro.
Minhas considerações: posso dizer que foi uma honra ter essa prosa com Riobaldo, que, inclusive, eu gostaria de ter mais com ele. Uma vontade imensa de ficar mais, ouvir mais! Ele está partindo para o Brasil adentro, vai para Sum Paulo, e seguir adiante, tocando a boiada, contando seus causos, com sua camisa de linho, sua caneca de agatha, falando de amor e também do cramunhão. Sinceramente? Eu espero que ele não pare. Saber contar história é uma dádiva. Se existe ou não o diabo, uma coisa é certa: basta-me ouvir sobre. De resto, prefiro manter-me na direção dos fios de pensamento do Rosa: com Deus existindo, tudo dá esperança, sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há de a gente estar perdidos no vaivém, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos.
Parabéns à curadoria do CCJF, que acolheu essa obra tão atemporal e bela, aos que valorizam a cultura brasileira.
SINOPSE
O ator Gilson de Barros estreia o monólogo “O Diabo na rua, no meio do redemunho”. O espetáculo aborda as ações passadas do ex-jagunço Riobaldo, hoje um próspero fazendeiro. As inquietações da juventude e o grande amor homossexual pelo amigo Diadorim o levaram a um pacto fáustico. Ao rememorar esses acontecimentos, ele reflete sobre Deus, amor, religião, e, principalmente, o demônio. “O diabo existe?”, eis a principal questão desse homem angustiado, que constata: “viver é muito perigoso!”
FICHA TÉCNICA
(recorte do livro Grande Sertão:Veredas, de João Guimarães Rosa)
Adaptação e atuação: Gilson de Barros
Direção: Amir Haddad
Cenário e figurinos: Karla de Luca
Iluminação: Aurélio de Simoni
Programação visual: Guilherme Rocha e Mikey Vieira
Técnico: Mikey Vieira
Produção executiva: Mikey Vieira
Produção: Barros Produções Artísticas Ltda.
Trilha sonora: "Canção de Siruiz" poema de Guimarães Rosa musicado por Wilson Dias
SERVIÇO
Temporada Rio de Janeiro - 15/04 e 16/04 (último final de semana)
Centro Cultural Justiça Federal
Endereço: Av. Rio Branco, 241 - Cinelândia
Telefone: (21) 3261-2550
Ingressos: R$ 40,00 (inteira) | R$ 20,00 (meia)