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Para entender o belo, assista "Leci Brandão - Na Palma da Mão"

Olhar Teatral, Por Paty Lopes, Crítica Teatral

Em 17/04/2023 às 09:33:07

Para entender o belo, é preciso abrir os olhos, visitar lugares aonde habita a poesia…

Cometemos erros crassos, e o meu foi não ter assistido ao espetáculo Leci Brandão - Na Palma da Mão antes. Eu poderia ter tido esse movimentar da alma antes.

Enquanto escrevo, escuto Leci, e não sei se choro pela emoção de escrever sobre a compositora, sambista, política e brasileira Leci Brandão, ou por lembrar de um dos melhores espetáculos que nesse momento ocupa um dos nossos equipamentos públicos, o teatro João Caetano, lugar do povo, esse que Leci tanto respeita e canta em seus belos versos, versos musicais cantados por artistas reconhecidos internacionalmente, como Anitta e Seu Jorge.

Ao produtor da peça, Bruno Mariozz, obrigada por conceder a nós, a sociedade, a oportunidade de ouvir com tanta peculiaridade a história de uma das maiores artistas do nosso tempo. Uma mulher com ouvidos sensíveis a todos nós brasileiros.

O teatro educador chega através do texto de Leonardo Bruno, que trouxe poesia, e verdade, enxergando o que deveria ser enxergado, nem mais, nem menos. Nada é superficial, não apresentou informações desnecessárias sobre Leci, foi consistente ao escrever sobre a história de uma das maiores compositoras do nosso país. Através das suas pesquisas, abordou com precisão e delicadeza os desdobramentos da vida dessa artista. Ele usou do bom senso, foi cirúrgico. Bem sabemos, por exemplo, que cirurgiões neurológicos, precisam de mão leves para não cometer erros. E assim foi Leonardo…

Ao falar de Carlos Cachaça e Cartola, o dramaturgo entendeu a dimensão da artista. Para falar de Leci, é preciso entender do universo, do samba. E foi nessa fogueira santa que ela foi embalada, foi nesse meio que permeou Leci, ainda muito jovem.

Carlos Cachaça, quem foi? Um dos maiores compositores da Mangueira, fez parte do Bloco do Arengueiros, bloco que antecedeu a Estação Primeira de Mangueira. Chico Buarque ao conhecê-lo disse: “Você existe mesmo? Eu pensei que fosse uma lenda”.

Senhores, Carlos Cachaça e Cartola compuseram um dos melhores sambas que temos: "Alvorada", esse que deve ser cantado, de geração em geração, como um hino. E que, para nossa sorte, é tocado majestosamente por uma flauta transversa (acho eu), no espetáculo.

Não podemos deixar de mencionar que foi Carlos Cachaça quem levou a primeira escola pública para a Mangueira, a primeira escola numa favela, a escola Humberto de Campos, que chegou mediante ao pedido do compositor ao político Pedro Ernesto, em 1936.

A histórias dos orixás que chegam são tão bem-vindas em um país de intolerância religiosa, tudo tão bem contado.

E assim, entendemos a qualidade textual desta obra.

A direção musical de Arifan Junior foi perfeita. Não sei dizer se o repertório das músicas levadas ao palco foram concebidas por ele. Se sim, posso afirmar que não poderia ser melhor. Se não, posso dizer que os músicos presentes levam o musical com graça, em excelente harmonia.

Pedro Lima, o preparador vocal, é um profissional da música. Já tive contato com ele e posso afirmar que é um profissional responsável e abraça o projeto. Mais que isso, tem a competência de trazer a ele a qualidade que busca nesse quesito

A cenografia é composta por folhas de mangueira. Precisa de mais explicação?

Sim, as folhas da manga têm a função de anular e limpar o corpo de qualquer carga negativa energética que esteja a atrair.

As folhas, para as religiões de matriz africana, têm importância fundamental, pois são fonte de ensinamento e de cura.

E Leci Brandão sempre defendeu sua fé nos orixás.

O desenho de Luz é simplesmente perfeito. Daniela Sanchez trouxe ao palco a palheta de cores dos orixás e também da Estação Primeira, o verde e rosa, essas concebidas por Cartola, no final da década de 1920.

A profissional também leva ao palco rajadas de luz, e contra luz, que dão a nós, espectadores, a certeza de um espetáculo bem arquitetado.

A iluminação também evidencia os personagens em suas narrativas. Daniela sabe o momento certo das nuances, dos esfumaçados e o foco. A caixa cênica recebe a iluminação exata, luz aonde deve ter luz, entendendo que não se trata de um espaço pequeno, com a boca de cena bem larga. Mesmo assim, não há espaços mal alimentados por essa energia contagiante. Excelente trabalho!

O figurino é assinado por Rute Alves. A concepção dessa artista foi imensa. Soube trabalhar com as cores da grande Estação Primeira de Mangueira. Embora eu seja mais fã do verde e rosa pastel dos dias atuais, Rute soube levar as cores fortes com delicadeza. Na indumentária da mãe de Leci, por exemplo, o desenho do vestido era mimoso e ficou bem o verde intenso. Já o casaco adotado por Leci veio em um tom mais leve de rosa, belíssimo, com um brilho suavizado!

Quanto à roupa que o artista Sergio trajava, é de um encanto ímpar. O figurino vem com umas rajadas de rosa e desenhos da comunidade, sem contar a perspicácia em entender dos movimentos de um artista que interpreta nada mais, nada menos que Exu, que beleza!

O diretor artístico e também idealizador, Luiz Antonio Pilar, merece palmas, por juntar e saber fazer um espetáculo como "Na Palma da Mão". Não há falhas. Se houver, são imperceptíveis…

O último trabalho que assisti do diretor foi "Lima Barreto - Ao Terceiro Dia", obra esplendorosa, magnífica. Mais uma vez, ele cumpre seu papel com beleza.

Infelizmente, o que vale no Brasil é o Coldplay. Nada contra a banda, muito pelo contrário, sou praticamente uma devota, mas antes da banda britânica, defendo minhas raízes, minha essência, minha cultura, a qual prezo e muito admiro.

Luiza Loroza fez o movimento de corpo, a artista trabalhou muitíssimo bem. Ela esteve ao lado da diretora Duda Maia e, inteligentemente, aprendeu e aprende, porque cada espetáculo tem sua característica. É preciso que se estude para que a montagem conte as verdades dele, e isso se percebe no movimentar dos artistas no palco.

Vamos falar dos artistas?

Esses que nos levam aos céus ou aos infernos, porque nem sempre uma obra nos atravessa de maneira positiva. Isso é um fato e não uma verdade absoluta.

Nem sempre os críticos pensam da mesma maneira, ou olham da mesma forma, e isso deve ser respeitado também. Existem espetáculos que são sucesso de crítica e todos vão na mesma direção. Mas, às vezes, isso não acontece, faz parte!

O espetáculo começa com o artista Sérgio Kauffmann. Ele vem encarnando Exu com os trejeitos que favorecem o personagem. Ele encena com uma iluminação vermelha ao fundo e, à sua frente, a luz ilumina com a intensidade certa, deixando em evidência suas expressões faciais. Que cena esplendorosa, que momento! Ele canta um ponto e faz ponte com Leci, pois ela faz saudações aos orixás em seus discos. Como eu disse, tudo está em harmonia, tudo casa na obra.

Sérgio canta como uma lendária sereia, uma voz magnífica. Ele hipnotiza, além de tocar instrumentos.

O corpo do artista está à disposição do teatro, da cena, e isso os deuses já sabem. Quem não sabe, passa a saber, e fica encantado. Quando o artista traz Cartola, é arrebatador!

Verônica Bonfim, a atriz e cantora, deve ter nascido no dia da alegria, porque é isso que ela transmite. Não a conheço pessoalmente, não faz parte do meu círculo de amizades, mas de longe nota-se a simpatia que ela emana. Em uma das cenas, dona Lecy Brandão (sua personagem), abraça a filha (Leci) e traz um canto em forma de choro, um clamor dolorido, contundente, e infinitamente belo.

Tay O’Hanna, o que falar? Quanta responsabilidade essa atriz tem sobre seus ombros.

Ser Leci, interpretar Leci, não é para qualquer um, Tay tem voz, Tay tem talento.

Ser Leci, entender Leci, é um privilégio, ainda que seja no teatro.

Faz pouco tempo que entrei em contato com Leci Brandão, quando fui curadora da Exposição "Rádio Negro", no MIS - Museu da Imagem e Som, onde tive o imenso prazer e orgulho de falar dessa mulher. Leci defende causas, defende a nós mulheres em vulnerabilidade, e está a disposição do povo. Ela enviou-me um áudio falando sobre a sua história no rádio, disse ser artista oriunda do rádio, o que - com todo respeito - discordo. Leci é oriunda dos mistérios da vida, dos deuses, algo espiritual, o que não se tem explicação.

Tay, com um corpo frágil, tal como Leci, quando abre a boca, contorce a alma dos espectadores. Quando sorri, arrebata.

Tay e Leci, Leci e Tay, de alguma forma se encontraram, e a atriz soube ser cordial à sua personagem, soube pisar com elegância em um terreno legitimado por ancestralidades, com a grandeza em saber fazer o teatro. Tay nos fez ver de perto a Leci, embora ali estivesse a Tay, com a delicadeza da brisa quando era para ser assim e a força de um vendaval. Tudo em equilíbrio, tudo dosado com retidão. Se ela será premiada, não cabe a mim saber, não sou jurada, mas me coube sair do João Caetano com os pés nas nuvens, lembrando do seu cabelo vermelho, sua curvatura corporal e encenações envolventes, que serão eternizadas em minha memória afetiva. Sou grata a isso, sou grata ao universo por essa tempestade de "novo saber" através do glorioso teatro brasileiro.

Em meu universo utópico, o espetáculo deveria ir para a Mangueira, porque é de lá que grandes clássicos saíram/saem/sairão. Para que isso aconteça, é preciso que barulhos de balas sejam trocados pelo teatro, pela música, pela cultura, pelo choque de informações sadias. É preciso que eles sejam alimentados com a sua própria história. Eles precisam se reconhecer, entenderem que de lá do morro há arte do mais alto nível, que contam a história do nosso país, do nosso povo, que deve ser entendido como um só!

Leci Brandão e Cartola

SINOPSE

A trama é construída a partir da relação da artista (vivida por Tay O'Hanna) e sua mãe, Dona Lecy (Verônica Bonfim). Sérgio Kauffmann representa personagens masculinos importantes na vida da cantora, como o líder comunitário Zé do Caroço, inspiração de uma de suas músicas mais famosas.

FICHA TÉCNICA

Leci Brandão – Na Palma da Mão

Texto e pesquisa: Leonardo Bruno

Adaptação dramatúrgica: Lorena Lima, Luiz Antônio Pilar e Luiza Loroza

Direção: Luiz Antonio Pilar

Direção Musical: Arifan Júnior

Assistente de direção: Lorena Lima

Direção de Movimento: Luiza Loroza

Figurino: Rute Alves

Cenografia: Lorena Lima

Iluminação: Daniela Sanchez

Direção de Produção: Bruno Mariozz

Atriz/Cantora: Verônica Bonfim

Ator/Cantor: Sérgio Kauffmann

Atriz/Cantora: Tay O’Hanna

Violão, clarinete e agogô: Matheus Camará

Cuíca, tantan, surdo, caixa, tamborim, congas e efeitos: Pedro Ivo

Violão, cavaquinho e xequerê: Rodrigo Pirikito

Pandeiro, atabaque, congas, repique de anel, repinique e efeitos: Thainara Castro

Preparador Vocal: Pedro Lima

Assistente Dir. Musical: Rômulo dos Anjos

Assistente Figurino: Diogo Jesus

Assistente Cenografia: Tarso Tabu

Cenotécnico: Vicente Mota

Produção Executiva: Synara Moreira

Produção: Palavra Z Produções Culturais

Idealização e Realização: Lapilar Produções

SERVIÇO:

Temporada: Até 29 de abril de 2023 – sexta, às 19h e sábado, às 18h

Endereço: Praça Tiradentes, s/n – Centro, Rio de Janeiro – RJ, 20060-070

Tel: (21) 2332-9257

Ingresso: R$ 50 – inteira

R$ 25 – meia entrada

Bilheteria: terça a sexta, de 13h às 18h, sábado de 15h às 18h

Vendas online: https://funarj.eleventickets.com/

Duração: 80min

Capacidade: 1.139 lugares

Classificação indicativa: 14 anos















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