Que maravilha é ser brasileira! Digo isso, principalmente, quando me deleito em obras de alguns artistas do país em que nasci. Sinto-me tão orgulhosa dessa cultura que carregamos, que chego a emocionar-me diante dos feitos de cada um deles!
Sabemos que o Brasil é imenso e multicultural. Isso nos torna belíssimos de certa forma. Somos uma junção de culturas diversas, somos riquíssimos. No entanto, podemos destacar uma região próspera. O Nordeste é uma fábrica potente de artistas musicais, isso é incontestável! Para chancelar o que escrevo, oriento os leitores a assistir “Dominguinhos - Isso Aqui Tá Bom Demais”, porque é bom demais!
Uma obra documental, escrita por Silvia Gomez, uma das melhores dramaturgas do Brasil, premiada e com aptidão nata em escrever para o teatro. Ela nos apresenta a vida de Dominguinhos, com detalhes e cronologia exata dos fatos e feitos da vida do artista. Silvia fez um mergulho lindo e esclarecedor sobre o imenso Dominguinhos. A dramaturga soube elucidar o que merece ser evidenciado nessa trajetória. Soube deixar de lado o que a grande mídia dava visibilidade e desnudou toda construção artística do pernambucano Dominguinhos.
Silvia, com toda sensibilidade, soube trazer artistas que estiveram ao lado do instrumentista, cantor, compositor e exímio sanfoneiro. Elba Ramalho, Gilberto Gil e Gal Costa são alguns deles, mas a homenagem a Luiz Gonzaga foi de uma sutileza imensurável, principalmente quando entendemos o tamanho da amizade desses dois grandes nomes da música brasileira.
Silvia foi fantástica ao trazer para o texto entrevistas de Dominguinhos. Assim o ouvimos. Essa aproximação é uma experiência muito bem-vinda, não deixando dúvida que a pesquisa foi bem executada.
A iluminação é um escândalo! Gabriel Fontes tem galgado passos nesse sentido, foi indicado ao último prêmio Shell de Iluminação com o espetáculo "Um Precipício No Mar". Mesmo que eu escrevesse uma bíblia, não conseguiria descrever o que vi nesse espetáculo quando me reporto ao desenho de luz que ele oferece ao espectador! A iluminação ajuda a compor o cenário, que também é desenhado por ele. A direção é também dele, assim como a idealização desse projeto, que maturou por sete anos. Luzes que falam, que desnudam, que nos deixam excitados na plateia. Em uma das cenas, quando o artista está fazendo uma entrevista, a luz lateral se acende. Fica tudo tão real que é impossível não voltar ao passado. André Prado divide com Gabriel os desenhos de luz, uma assinatura dupla que consiste em uma iluminação potente.
O cenário apresenta quatro grandes pilastras que representam as metrópoles, os arranha-céus. A selva de pedra que vivemos. E, no fundo, temos um pé de cajueiro, que - iluminado - torna-se um tesouro visual, uma pérola aos olhos, que nos remete às raízes do artista homenageado.
O figurino de Ana Luiza é simples, nada que chamasse minha atenção, nada luxuoso tal como o Dominguinhos. As indumentárias masculinas estavam de acordo com o personagem e a época vivida. Já o figurino das atrizes tem umas pregas reverenciando a sanfona do artista em voga. Quanto à Luiz Gonzaga, uma capa linda é posta sobre as costas do artista que o representa. Mas tudo com sutileza. As peças utilizadas de Dominguinhos eram sóbrias e bastante satisfatórias.
Agora vamos aos artistas. Para sermos claros e o leitor entenda um pouco desse projeto, é necessário entender o propósito do idealizador, que foca na qualidade musical que ele queria apresentar ao público. Longe de uma miméses (ato de imitar), o espetáculo cria identidade própria, com artistas que também são fãs de Dominguinhos. Diante desse afeto, eles constroem uma obra que todo brasileiro merece assistir.
Temos somente dois artistas de teatro no palco, os demais do elenco são músicos potentes, do mais alto nível.
Os artistas musicais, em seus currículos, tocaram com Marisa Monte, Gilberto Gil, Ivete Sangalo, Fagner, Elba Ramalho, Fábio Junior, Roberta Sá, Luiz Gonzaga e com o próprio Dominguinhos. O projeto tem o propósito de levar à plateia músicas de qualidade, o que penso ser justíssimo. Afinal, falamos do artista que nos presenteou com clássicos de nossa música, que serão perpetuadas por sua beleza construtiva, não tenho dúvidas.
Cosme Vieira atua como Dominguinhos e dá vida à sanfona. Ele simplesmente nos tira de dentro do Teatro Riachuelo! É possível se perder em emoção com a vida, com as falas da sanfona, porque, nas mãos do artista, ela fala! E ficamos todos IMPACTADOS!
Nota-se uma simplicidade singular do artista e uma soberania pouco vista diante desse instrumento.
Jam da Silva é percursionista. O artista interpreta também o eterno Luiz Gonzaga. Que coisa mais linda de se ver! Ele parece pulsar tal como sua percussão no palco, transcende da alma todo aquele barulho, batidas em couros dos instrumentos. Em uma das cenas, encarna Lampião e duela com Dominguinhos, discutindo sobre o xaxado, esse difundido por Lampião, o Rei do Cangaço, figura icônica da cultura nordestina.
Sabe-se que Luiz Gonzaga sonhava em conhecer Virgulino Ferreira. Inclusive, a história conta que um dia, a mãe do Rei do Baião correu sertão adentro fugindo do bando, enquanto o artista, ainda menino, sonhava em ver o homem mais procurado pela "volante", a polícia.
O xaxado era uma forma de dança onde a arma representava a dama. Era como um rito de batalha. O nome vem do barulho que as alpercatas (sandálias) faziam no chão.
Para saber mais sobre o xaxado: https://www.pisadadosertao.org/xaxado
Uma bela menção ao Rei do Baião, já que esse foi um dos maiores amigos de Dominguinhos e, pode-se dizer, que precursor também.
"Asa Branca" é levado ao palco. É de arrepiar! Como falou Elba Ramalho: "se o Nordeste fosse independente, o Hino Nacional só poderia ser 'Asa Branca'!". Concordo com ela!
Falando em Elba, embora a admiração do seu público tenha diminuído em relação à cantora, por apoiar um governo fascista, confesso que ela não foi e não será apagada em minha memória cultural. Não mesmo, Bolsonaro não tem esse poder! Reconheço uma representatividade nordestina nela não dimensionável. E Dominguinhos pareceu que se deixou seduzir por ela, por seu encanto musical, uma sereia na terra do agreste! Quando a atriz pernambucana Luiza Fittipaldi canta "Gostoso Demais" e "De Volta Pro Aconchego" (e chego a me arrepiar só ao lembrar), a plateia a acompanha, em um tom baixinho, tornando esse momento único. Músicas inesquecíveis na voz de Elba Ramalho!
Fico a imaginar Dominguinhos em outro plano regozijando seus feitos e a maravilha desse momento, com seu sorriso largo. Aliás, a última vez que assisti essa cena, foi na aparição de Moraes Moreira também no Teatro Riachuelo, no espetáculo "Novos Baianos". Para nossa surpresa, Moraes estava na plateia e cantamos juntos para ele, "Preta, Pretinha". Jamais vou esquecer dessa cena feita por nós espectadores. Uma conexão linda que o teatro nos proporcionou!
Falando em Luiza, ela é uma atriz que estreia no palco teatral. Dela sai fogo, alegria, uma personalidade forte, que nos leva ao reconhecimento da sua beleza cênica. Luiza é linda, mas não falo de uma beleza física, mesmo sendo bela em seu estereótipo, mas de uma beleza e força magnética do seu ofício.
Ela se apresenta no palco como Anastásia, a mulher que roubou o coração de Dominguinhos e que compôs ao seu lado. Um amor maior do mundo, porque para escrever o que Anastácia compôs não existe outra forma que não seja estar mergulhada no fogo da paixão. A dramaturga, como mulher, soube dar a Anastácia sua importância. Justo.
Wilson Feitosa é o único artista de teatro no palco. Mas ele não é só um artista de teatro, não mesmo, o artista é completo! Toca, canta, narra, dança e leva o espetáculo com uma força, uma animação que chega ao espectador e também no palco com os colegas. Mesmo não tendo eles o teatro em seu fazer cultural, Wilson parece não disputar espaços. É lindo ver como ele divide o palco munido de gentileza com todos do elenco. Apaixonante!
Liv atua como a filha de Dominguinhos, um chamego que o artista deixava em evidência. A artista canta bem, uma belíssima voz. Ao conhecê-la fiquei sem palavras, confesso. Soube que ela é realmente a filha do artista, o qual tenho a mais sincera admiração. Parece que me perdi e fiquei bem mexida. Afinal, eu estava diante do maior tesouro de José Domingos de Morais. Questionei o que o espetáculo representava para ela. A resposta foi imediata: é muito emocionante ver o teatro lotado cantando a música de meu pai!
À Liv, nosso maior agradecimento por liberar a obra. Que seu pai siga de geração em geração, por suas obras tão cheias de brasilidade e significância.
Zé Pitoco e Hugo Linns têm melaço da cana em suas musicalidades. O primeiro vem com a zabumba. É interessante que, mesmo quando não está tocando, entra na música dos parceiros e se deixa levar pela melodia, balançando suas pernas. Usa seus pulmões com a clarineta, trazendo o ritmo melodioso, perfeito aos nossos ouvidos.
Enquanto isso, Hugo toca as cordas para dar ao musical os acordes necessários! Sei lá, mas há uma junção de deuses musicais dentro daqueles corpos. Imagino que eles não saibam, mas alcançam o nirvana! Acho que é isso...
Minhas considerações finais ficarão registradas aqui.
Ao final do espetáculo, depois de uma viagem linda pela vida de Dominguinhos, a música "Eu Só Quero um Xodó" é levada ao público. Os músicos descem do palco e todos nós nos levantamos, cantamos e nos tornamos mais brasileiros que nunca!
Naquela explosão que quebra a quarta parede, nos tornamos fãs também daqueles artistas imensos à nossa frente. E antes de voltarem ao palco, uma segunda explosão se dá ao espetáculo, pois eles são ovacionados com grande fervor, com gritos de "bravo"!
Olhei para trás... Eu estava na quarta fileira e vi o teatro lotado, que aplaudia, encantado e agradecido, pelo feito desses artistas.
Que mais fazedores de artes no Brasil tenham a força e a coragem do diretor Gabriel Fontes para trazer o que é nosso, o que nos pertence, onde nossa poesia é deliberada. E todos possam entender o nosso tamanho, o tamanho da nossa cultura que, para mim, em lugar nenhum do mundo é tão bela e elaborada com demandas imensas de paixão!
SINOPSE
O musical conta certas passagens da vida e obra de Dominguinhos, misturando documento e ficção, já que os artistas em palco relembram sua trajetória mediante fatos, músicas e parcerias profissionais e afetivas, enquanto conversa com sua maior e fiel companheira, a Sanfona.
FICHA TÉCNICA
Dramaturgia: Silvia Gomez
Direção artística: Gabriel Fontes Paiva
Direção musical: Myriam Taubkin
Elenco:
Cosme Vieira
Hugo Linns
Jam da Silva
Liv Moraes
Luiza Fittipaldi
Wilson Feitosa
Zé Pitoco
Desenho de Movimento: Ana Paula Lopez
Desenho de Luz: André Prado e Gabriel Fontes Paiva
Figurino: Ana Luiza Fay
Cenário: Gabriel Fontes Paiva
Pesquisa documental: Lucas Nobile
Preparação vocal: Ana Luiza
Assistente de direção: Ana Paula Lopez e André Prado
Assistente de direção musical: Hugo Linns
Produção e assistente de cenografia: Carol Buceck
Coordenação técnica: André Prado
Engenharia de som e operação: Alberto Ranellucci
Assistente de som: Gustavo Magrão
Direção de Palco: Dani Colazante
Camareiro: Jô Nascimento
Contrarregra: Jeferson Oliveira dos Santos
Design gráfico: Teresa Malta
Gestão de Projeto: Luana Gorayeb
Assistentes administrativos financeiros: Beth Vieira e Rogério Prudêncio
Produção executiva: Camila Scheffer
Assistência de produção: Rafaella Blat
Direção de produção: Dani Angelotti
Realização: Fontes Artes e Projeto Memória Brasileira
SERVIÇO:
De: Até 11 de Junho
Quinta, Sexta e Sábado às 20h, Domingo às 18h
As sessões de sextas contarão com intérprete de libras. Todas as apresentações têm libreto em Braille.
Ingressos pela Sympla
Local: Teatro Riachuelo (Rua do Passeio , 40)
Classificação indicativa: Livre
Duração: 110 minutos