“O Brasil foi o único país sul-americano a participar do primeiro I Congresso Internacional das Raças, em 1911. Enviou para Londres o diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, João Batista de Lacerda. Em Londres, ele apresentou um artigo onde dizia, mediante argumentos biológicos e sociais, que num futuro os negros e mestiços iriam desaparecer. A notícia foi recebida com grande tristeza entre os brasileiros, pois um século seria tempo demais para um Brasil embranquecido.
Já o antropólogo Roquette Pinto, presidente do I Congresso Brasileiro de Eugenia, em 1929, previa uma país com 80% brancos e 20% negros em 2012.
E, desde então, houve-se investimento para o embranquecimento, pagando-se valores altíssimos para casais portugueses virem morar na Terra Brasilis.”
(Dados do livro, Brasil: Uma Biografia, de Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling).
E qual a relação do parágrafo com uma crítica teatral?
Posso afirmar que, para entender esse espetáculo, é preciso compreender um pouco da história desse país. É preciso entender o lugar que destinaram aos negros do Brasil, a Pequena África.
Penso que minha escrita estará inclinada às expressões faciais do artista Reinaldo Junior, diante da sua atuação como pai de uma menina de oito anos que sofreu racismo dentro da escola que estuda, por seu amiguinho de classe, e o caso foi abafado pela direção da escola, até a reunião dos pais…
O ator Reinaldo chama muito atenção por seu trabalho. Ele atua com a vertente de convencer a plateia da necessidade de mudanças. Uma performance rica e que ressignifica comportamentos quanto ao racismo. Nos faz questionar as diretrizes das escolas que estão nossas crianças e qual o comportamento das instituições educacionais diante do racismo.
Ele atua como um pai que cobra da escola uma ação mais precisa quanto ao crime cometido.
Do outro lado está Alex Nader, que atua como o pai da criança que comete o racismo. Uma excelente atuação! Ele chega a ser abusivo no papel, atua com precisão. Posso dizer que ele enoja em certas cenas. Alex acertou e acho isso suficiente para falar do artista. Mais que isso seria xingar seu personagem pedante!
Stella Maria Rodrigues é a mediadora da reunião. Já assisti Stella em outras atuações, mas, dessa vez, ela me deu uma boa rasteira. Está divina, forte e encara com muita resiliência sua personagem. No final, nota-se o cansaço da atriz, que se joga em um papel conflituoso com ela mesma. Incrível sua atuação, que trouxe maturidade cênica. Os movimentos dela são precisos também e está harmônica com ela mesma. Jamais esquecerei essa personagem, essa atuação.
Mery Delmond encarna a bibliotecária. Na verdade, a artista assina o texto ao lado do diretor Rodrigo França. Ela parece entregar ao público seu texto com intensidade. Vi da Mery em cena a vontade de falar sobre o tema, estava certa do texto que ela mesmo desenvolveu, a entrega a ele foi para além do papel.
A montagem nos atrai, da plástica visual ao texto, que conta com uma ficha técnica abraçada à ciência. Déborah Medeiros, graduada em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, é psicoterapeuta e ministra palestras sobre relações raciais, processos de subjetivação e descolonização do pensamento. Ela deu a consultoria para o projeto, o que julgo importante.
Ao mencionar Monteiro Lobato como uma fonte de leitura, o pai do menino branco que hostilizou Zuri - a aluna negra -, a plateia riu. E onde estava o motivo do riso? Lobato foi um homem cruel. Se, por um lado, lutou pelo desenvolvimento do país, deixou um legado asqueroso em suas literaturas, recheadas de racismo, virou o rosto a diversidade. Foi cruel com Anita Malfatti ao escrever sua crítica “Paranoia ou Mistificação”, quando usou o termo da deficiências da artista plástica para criticar sua obra. E isso não foi suficiente: apoiou uma das piores ordens norte-americanas, a Ku Klux Klan. “País de mestiços, onde o branco não tem força para organizar uma Ku Klux Klan, é país perdido para altos destinos”. Palavras de Monteiro, pasmem!
Monteiro Lobato é indefensável. Digo mais, é uma vergonha ter o nome do literato em nossas escolas, entendendo, principalmente, que a grande maioria dos brasileiros, hoje, são negros.
Deve-se ter o cuidado, por exemplo, que assuntos como este cheguem ao público de forma ética.
A façanha do cenógrafo Clebson Prates chamou muito a minha atenção. Ele trouxe um cenário monocromático. Tudo na sala de aula era branco: os móveis e os objetos de cena, mostrando um Brasil de raízes negras, mas com poderio branco.
Quando entrei no Sesc Arena, em Copacabana, vi livros pendurados em varas cênicas. Eram obras literárias brancas, mas com o nome de autores negros, como Machado de Assis, Elisa Lucinda, Carolina Maria de Jesus, Solano Trindade, Ruth Guimarães, entre muitos outros.
O cenógrafo e a narrativa do ator protagonista casam-se muito com os argumentos da escritora Sinara Rubia - autora brasileira de livros infantis, educadora e mestranda em Relações Étnico-Raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca.
Sinara, em um dos seus cursos, "Letramentos de inspiração griô: contação de histórias e literatura infantojuvenil negra por uma educação antirracista", defende a ideia de mais literaturas negras em escolas para mudanças significativas em relação ao racismo no Brasil.
Sinara defende o PL 1786/2011, a Lei Griô, em tramitação no congresso nacional, com a missão de instituir uma política nacional de transmissão dos saberes e fazeres de tradição oral, em diálogo com a educação formal.
Então quer dizer que agora a história dos negros deve estar nas nossas escolas também?
A lei prevê valorizar a cultura brasileira. Dentro da lei, por exemplo, vê-se como Griô um pajé, que traduz a cultura desse povo, que é originário.
Portanto, pode-se dizer que o cenógrafo foi para além de uma sala de aula, mas pensando em um futuro mais ético, onde todas as histórias sejam contadas, através dos livros, ou seja, como for.
O pulo do gato do figurinista foi entender que tínhamos no espetáculo quatro artistas. As indumentárias dos artistas brancos eram de tom claro e os artistas negros vinham com um tom que nos remete à África, um tom mais quente, mas que não gritava. O equilíbrio e bom senso de Marah Silva está evidenciado em seu trabalho.
A direção de movimento de Tainara Cerqueira foi ponderada, sofisticada, sem agressividade, nada de demandas desnecessárias. Sobriedade, nada que pesasse aos nossos olhos e às nossas sensações.
A iluminação do espetáculo abraçou-se aos jogos cênicos. Ela estava atenta aos movimentos dentro de muitas cenas que espetáculo trazia.
Um desenho de luz forte, sem alternância de cores, que se casou perfeitamente com o espetáculo. Pedro Carneiro, seguiu muito bem com os seus amigos refletores! Tudo visível.
Assim como o técnico de som. Ao montar o espetáculo, teve a audácia/coragem de não microfonar os artistas, ciente que tudo seria ouvido, mesmo com o eventual som mecânico do espetáculo ou a trilha sonora. Bom trabalho!
Rodrigo França é quem assina a direção da obra. Quem conhece o diretor sabe que seus trabalhos são sempre bem-vindos. Rodrigo é um homem que luta contra o racismo e, em suas redes sociais, se posiciona avidamente. E isso reflete em seus trabalhos. Eu poderia mencionar algumas de suas obras, sucessos de crítica e público, porque Rodrigo, mesmo diante da cientificidade, se faz entender. Isso, para mim, é o suficiente. Não me lembro de entrar em um dos seus espetáculos e não entender as mensagens que ele quer imprimir ao público que o assiste. Há beleza em suas obras, sempre cercado de dados e pesquisas.
Penso que, se existe um Abdias Nascimento no passado do teatro, hoje temos um Rodrigo França. No teatro, ele defende essa parte da sociedade de forma bastante peculiar. Sempre muito inteligente em saber identificar as necessidades e injustiças dos negros no Brasil.
Nessa obra, ele soube trazer um texto com a dramaticidade certa. Com inspiração no livro do jornalista Manoel Soares, Rodrigo França e Mery Delmond criaram um texto muito interessante, cheio de conflitos que provocam a plateia, que pareceu querer defender o protagonista do espetáculo todo o tempo. A plateia fica incontida!
O texto é pertinente, cheio de desdobramentos surpreendentes.
Durante a reunião, o pai traz a reclamação de um trabalho escolar sobre orixás. A bibliotecária responsável menciona a totalidade do trabalho, que abrangia os deuses nórdicos e a mitologia grega.
Obviamente, vê-se aí um texto que apresenta a intolerância religiosa, que permeia a sociedade diante das religiões de matriz africana.
Lembro-me bem, quando eu era criança, ter ouvido de um “homem de Deus”, médico, branco, que se macumba fosse boa, seria boacumba. As pessoas se puseram a rir, como se aquilo fosse uma piada. Hoje entendo como se maquina, como e onde se constrói essa intolerância. Ah! Se fosse hoje…
É preciso lutar contra isso, e o teatro colabora muito mais quando pensamos na construção de novos olhares.
Quando a suposta bolsa de estudos da aluna preta é negada pelo pai/protagonista, a informação desmonta o “antagonista” e a plateia. Uma peripécia sofisticada do texto, porque nem sempre um aluno preto é bolsista.
Uma das maiores falas, a meu ver, é quando o protagonista, em seu texto, afirma que a filha continuará na escola, resistindo e lutando contra o racismo. Que maravilha de fala! Como uma planta não foge à tempestade, mas continua no solo, de pé, de frente às tempestades, sem recuar. Que beleza de ensinamento, essa narrativa é para a vida: manter-se firme, diante das intempéries. Bravo! Bravíssimo!
O texto tem tanto a falar, são tantos momentos para reflexão. Um deles também me tocou, quando fala sobre o racismo velado e também do racismo reverso, um conteúdo textual que nos ensina e desvenda os nossos olhos e abre nossas escutas.
Existe cor tom de pele? Para mim existia até assistir ao espetáculo. Isso é para chancelar o que falo: a importância desse texto, dessa obra. Se não tivéssemos apagado o precursor do Modernismo no Brasil, o artista negro Estevão Silva, possivelmente eu teria sabido disso antes…
O que confesso não ter entendido foram as gargalhadas do público presente. Além de celulares ligados, tocando, sem respeito nenhum pelos artistas. O público dava gargalhadas de frente a um texto muitíssimo relevante. O racismo no Brasil, e o próprio tema, não é motivo de gargalhar, não mesmo. Uma criança negra não pode ser hostilizada, assim como as crianças brancas e deficientes. É preciso atentar, porque as consequências das risadas e a forma com que se leva o racismo, ainda que dentro do teatro, ainda que venha em forma de entretenimento. Cabem mais análises que risos.
O motivo da graça está longe da realidade que sofre o povo preto. Já estou cansada de ver mães em jornais matinais, com lágrimas nos olhos, por ver seus filhos vítimas desses crimes, inclusive em escolas. Como rir? Fiquei deveras incomodada com isso.
E outra: não vi um texto alinhado à comicidade. Muito pelo contrário, enxerguei um artista negro em uma performance dramática, diante do racismo vivido por sua filha. O Brasil precisa amadurecer para tentar aniquilar este racismo o quanto antes!
Porque, de tanto rirmos, tudo acaba continuamente em pizza: leis que não são cumpridas e muito mais coisas que não cabem nesse parágrafo.
Uma vez, ouvi Paul McCartney dizendo que, se um dia contassem para ele que o Muro de Berlim iria ao chão e que Mandela seria solto, não iria acreditar. Portanto, senhores, assim como o ex-Beatle, ainda hei de ver um Brasil menos preconceituoso, principalmente quando o meu olhar está inclinado para as artes, quando entro em uma das maiores instituições culturais do Brasil e vejo obras como "Para Meu Amigo Branco".
Vejo o espetáculo como uma obra necessária, porque fala sobre o acolhimento de quem sofre o racismo e fala sobre essa luta, que deve ser de todos nós!
Sinopse
A menina Zuri, de 8 anos, é chamada pelo coleguinha com uma referência racista. Ao solicitar explicação à escola, o pai da menina, Monsueto (Reinaldo Júnior, indicado ao Prêmio Shell de melhor ator em 2023), descobre que o racismo sofrido por sua filha estava sendo tratado como “coisa de criança”, bullying.
Ficha Técnica:
Inspirado no livro de Manoel Soares
Texto: Rodrigo França e Mery Delmond
Direção: Rodrigo França
Elenco: Reinaldo Junior e Alex Nader
Atrizes convidadas: Stella Maria Rodrigues e Mery Delmond
Direção de movimento: Tainara Cerqueira
Cenário: Clebson Prates
Figurino: Marah Silva
Iluminação: Pedro Carneiro
Trilha sonora original: Dani Nega
Consultoria pedagógica: Clarissa Brito
Consultoria de representações raciais e de gênero: Deborah Medeiros
Produção executiva: Gabriel Garcia e Leticia Kaminski
Direção de produção: João Bernardo Caldeira e Alexandre Galindo
Coordenação administrativa: Paula Martinez Mello
Idealização e coordenação de produção: João Bernardo Caldeira
Realização: Oswaldo Caldeira Produções e Tiago Monteiro Cardozo
Serviço
Gênero: drama
Temporada: Até 20 de agosto de 2023
Dias e horários: de quinta a domingo, às 20h
Local: Arena do Sesc Copacabana
Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160, Copacabana, Rio de Janeiro – RJ
Ingressos: R$ 7,50 (associado do Sesc), R$ 15 (meia-entrada), R$ 30 (inteira)
Informações: (21) 2547-0156
Lotação: 242 lugares
Classificação indicativa: 14 anos
Duração: 70 min
Bilheteria – Horário de funcionamento: Terça a domingos e feriados, das 14h às 20h.