Este espetáculo vem de encontro com que eu tenho defendido em relação ao teatro carioca. Estamos notando que alguns coletivos têm chegado aos teatros do Centro da cidade e Zona Sul. Isso deveria ser festejado, mas não é. O que temos, na grande maioria, são sessões vazias, sem visitas dos críticos que, ao final de um bom espetáculo costumam vibrar. Também percebemos que são poucos os colegas que indiquem boas obras. Isso é um tiro no pé! Entendo que precisamos é de plateia e não traumatizar o público, como tem acontecido. Às vezes, me junto a cinco pessoas em uma sala teatral e, no final, entendo o motivo das demais cadeiras vazias.
A dramaturgia precisa ser o foco de todas as obras. É ela que define a montagem. Tenho notado uma série de espetáculos que parecem ser entendidos apenas pelos artistas. Às vezes, me sinto uma capivara, apenas piscando em uma cadeira. Fico à espera de outro crítico para questionar se me falta conhecimento naquele assunto, mas, infelizmente, a resposta é a mesma.
Em 2023 tivemos duas montagens de Brás Cubas, do eterno Machado de Assis. Uma está na China, merecidamente. Já a outra tenta seguir, mas diante da complexidade da montagem, embora a estética seja lindíssima, não consegue chegar ao público.
Muitas vezes, a obra não vai oferecer uma estética visual ostentosa, mas isso não a transforma em uma perda de tempo. Não, senhores! Saímos do espetáculo com a sensação que valeu a pena. Esse é o caso do espetáculo "O Homem que Engoliu um chip".
Quando fui assistir à obra "Normal", não sabia de onde eram os artistas. Na verdade, isso pouco me importava, porque não sou a "Madre Tereza de Calcutá do teatro", mas apenas uma mulher que sai de casa com a intenção de ver uma obra teatral que me ensine algo ou me faça esquecer algo. Nunca é intenção perder meu tempo.
"Normal" é um espetáculo onde a teatralidade de valor faz morada, com artistas potentes, que souberam construir uma dramaturgia inteligente e ENTENDÍVEL.
Longe de ser o mais do mesmo, que muitos coletivos têm apoiado.
Os artistas contam a história de um assassino, um psicopata, em 1931. É possível, através das narrativas dos artistas, sentir o cheiro de sangue do estripador Peter Kürten. É sobre isso que falo. Três artistas periféricos que me levaram ao êxtase em suas performances, com patrocínio zero.
Ao conversar com o artista que dá vida ao personagem Peter Kürten, fui informada que a obra é pesquisada faz um tempo, há alguns anos.
Então entendi a potência da obra. PESQUISA! Se não tinha dinheiro para investir em figurinos e cenários, vamos investir no que temos. Touché! Acertaram precisamente. Fico até em dúvida se D'Artagnan chegaria a esse nível com sua esgrima. Uma obra é montada para o público e não para quem a idealizou.
Isso traz esperança, faz acreditar que existem muitos artistas com o interesse de desnudar histórias ainda desconhecidas.
Notável que os figurinos não foram criados para essa obra. Mas também elas ficam somente nos olhos dos críticos que desviam seus olhares para as indumentárias. Quando entendemos que não houve patrocínio, também compreendemos que a potência da obra está nas performances e textos.
E o que agrega esse espetáculo para a sociedade?
Eis aí um bom questionamento. Vivemos com uma saúde mental cada vez mais delicada. Isso é um fato incontestável.
Ao ouvir toda a história de Peter Kürten, fica perceptível o quanto a disfunção familiar o ajudou a construir um homem doente como ele foi. Não que isso seja desculpa para todo o mal que ele fez, logicamente, mas é preciso entender o quanto essas doenças mentais podem atingir um ser humano.
A dramaturgia deixa essas informações evidenciadas. Ele foi abusado pela própria mãe e irmã. Impossível ter dado certo. Faz uns anos que assisti a história do rapaz do ônibus 174, que parou o Rio de Janeiro, levando à morte a professora Geisa. Inclusive, ele era uma das crianças que estava na Candelária quando houve a chacina.
https://www.facebook.com/watch/?v=226567675213263
Psicopatia, sociopatia ou transtorno da personalidade antissocial é um comportamento caracterizado pelo padrão invasivo de desrespeito e violação dos direitos dos outros que se inicia na infância ou começo da adolescência e continua na idade adulta
O livro “Longe da Árvore”, de Andrew Solomon, diz: o trauma da Síndrome de Down está presente já durante o pré-natal. O autismo é começar ou detectar na infância. O choque das demais doenças é manifestado ainda na adolescência e no começo da vida adulta e a aceitação do filho que os pais amaram a vida inteira pode estar irremediavelmente perdida.
No mesmo livro, a mãe de um esquizofrênico relata que ela se conformou com a mente do filho, mas nunca com a vida dele.
É tudo tão complexo e não alinhado com que desejamos, que chega doer quando vemos a vulnerabilidade do outro.
Enfim, a peça é um transbordo na questão performática dos artistas. Isso, unido ao texto, torna a peça muito agradável e palatável.
Os artistas no palco estão entregues aos seus papéis, seus personagens. Era um sábado quando resolvi assistir, antes de ir ao Teatro Casagrande ver “Funny Girl”. Tive a sorte de me banhar em grandes espetáculos. Se um me presenteou com grande produção e artistas reconhecidos no cenário teatral brasileiro, do outro tive a elegância de artistas periféricos, que sabem fazer teatro de alto nível.
Anthony Hopkins fez inúmeros espetáculos e filmes, mas o que ficou marcado em mim foi “Hannibal”. Hoje posso dizer que esses artistas, que até então não conhecia, estarão marcados por esse trabalho. O olhar do assassino e a sangria do advogado em estar de frente com um homicida perigoso, ouvindo a vida dele na íntegra e abatendo suas teorias, foram de uma sagacidade ímpar.
A peça não está mais em temporada, mas sabemos da importância desse registros a esses atores que merecem este “atestado” para continuarem. Que voltem!
Sinopse
"Normal", baseado em fatos reais que ocorreram na Alemanha em 1920, apresenta as investigações do jovem advogado Justus Wehner sobre a intrigante vida do famoso serial killer Peter Kürten. Através de encontros investigativos com o Peter Kürten e sua mulher Frau Kürten, o advogado vai construindo sua tese acerca da normalidade.
Ficha Técnica
"Normal"
De Anthony Neilson
Tradução: Alexandre Amorim
Direção: Luiz Furlanetto
Elenco: Fifo Benicasa, Ricardo Soares e Nara Monteiro
Direção de arte: José Dias
Figurinos: Patrícia Tenius
Iluminação: Luiz Paulo Nenen
Trilha sonora original: João Schmid
Direção de movimento: Stefano Giglietta
Bonecas: Sonia Maria Vicente Soares
Direção de produção: CultConsult / Elaine Moreira + Cris Rocha
Realização: Fifo Benicasa e Ricardo Soares