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"Dona dos Raios e dos Ventos": um espetáculo que se banha em sororidade

Olhar Teatral, Por Paty Lopes, Crítica Teatral

Em 17/11/2023 às 12:32:14

“Acabei com tudo

Escapei com vida

Tive as roupas e os sonhos

Rasgados na minha saída

Mas saí ferido

Sufocando o meu gemido

Fui o alvo perfeito

Muitas vezes no peito atingido”

Essa música é como me sinto diante de tantos casos de abusos e violência doméstica que enfrentamos. Essa letra diz muito sobre os meus sentimentos de cansaço e frustração, por parecer que nossos passos não nos levam onde queremos chegar: no mínimo ao respeito dos nossos cônjuges ou qualquer outro homem que nos relacionamos.

Sempre feridas, fisicamente ou mentalmente, sufocadas pelo descaso da justiça. E parece que o teatro não nos tem abandonado, porque nele temos mulheres que atuam e que também conhecem o dissabor do patriarcado, que parece fazer moradia no seio dessa sociedade.

A protagonista, Helena, uma mulher de 40 anos, suportou uma relação abusiva por anos a fio. Mas finalmente toma a decisão corajosa de reescrever sua história. Com o apoio de outras mulheres, ela desperta para sua força interior e embarca em uma jornada em busca de uma vida nova. No entanto, no novo capítulo de sua vida, ela enfrenta inseguranças e medos avassaladores. A quase desistência parece inevitável, mas uma reviravolta na história a fortalece, capacitando-a a enfrentar seus medos e alcançar seus objetivos.

Faz pouco tempo que li no Portal Eu, Rio! uma matéria sobre o livro "Mulheres que Inspiram", da autora Anita Souza, o qual muito aconselho a leitura. Anita é psicóloga e escreveu vinte cinco contos sobre suas pacientes. Ao ler a obra, confesso que me assustei com os casos relatados, pois não temos compreensão de tudo aquilo que aquelas mulheres vivenciam. No entanto, ao assistir ao espetáculo "Dona dos Raios e dos Ventos", notei que não é só uma história aleatória, são diversas mulheres vitimizadas, pelos mesmos crimes!

Essa sensação de frustração e fracasso acabam se tornando mais pesadas.

O espetáculo é mais uma história. Se no livro "Mulheres que Inspiram" temos várias "Marias" - foi assim que a Anita as chamou para mantê-las no anonimato, no palco temos uma "Helena" que atravessa as mesmas situações.

Apenas questiono: até quando?

Izabella Bicalho é a atriz e a dramaturga dessa montagem. A atriz, como sempre, não deixa a desejar em suas performances. Ela pluraliza, porque são mais de cinco personagens interpretados. Ela canta com sua voz doce e se banha na potência de uma bela interpretação.

O espetáculo fala sobre dor, resistência e, principalmente, SORORIDADE. Quando a personagem chega ao limite em sua relação tóxica, a personagem Cida, uma mulher do interior, impulsiona Helena a seguir e deixar para trás o que não precisava levar para o futuro.

Cida é cativante. Como nordestina, traz as cangaceiras em suas falas, se apossa de toda a força da mulher do sertão para que Helena siga. Ao falar das cangaceiras, não posso deixar de mencionar a importância delas no bando de Lampião, por exemplo. Quando Maria Bonita e Dodô abriram o caminho para outras mulheres no cangaço, as filhas dos coronéis deixaram de ser violentadas sexualmente nas invasões das terras. Isso é muito importante pontuar!

E, assim, a personagem Cida, canta "Carcará". É uma das melhores cenas da personagem, pois levanta as mulheres da plateia, que se regozijam com a força da personagem.

Os movimentos da diretora Sueli Guerra ficam evidenciados também na cena e em toda a peça. Já os figurinos e os objetos de cena de Wanderley Gomes trazem ao espetáculo todos os personagens. Saias, chapéus e óculos escuros montam e desmontam todas as histórias. Lógico que esses elementos, juntados à interpretação da faceira atriz, dão o tom certo, fazendo com que o texto seja entendido por todos.

A atriz foi indicada a um prêmio de melhor atuação, e não poderia ser diferente. Iza troca de personagens de um segundo para o outro, deixando para a plateia essa mudança através da voz e expressões faciais.

As canções da imensa Maria Bethânia chegam completando a dramaturgia. Isso emociona o público, que a ouve cantar em silêncio, apenas com movimentos dos lábios. Afinal são canções que estão em nossos lábios.

Outra cena que chamou minha atenção é quando a personagem vai ao chão e levanta cantando “Grito de Alerta”, composta pelo estupendo Gonzaguinha e interpretada pela deusa Maria Bethânia.

“Primeiro você me azucrina,

Me entorta a cabeça

Me bota na boca

Um gosto amargo de fel

Depois vem chorando desculpas

Assim meio pedindo

Querendo ganhar

Um bocado de mel

Não vê que então eu me rasgo

Engasgo, engulo,

Reflito, estendo a mão

E assim nossa vida

É um rio secando

As pedras cortando,

E eu vou perguntando:

"Até quando?"

É um momento tão íntimo nosso... Digo "nosso" porque somente nós, mulheres, sabemos o sentimento que nos rodeiam diante de uma violência como a que é vivida pela personagem.

Mas a personagem se levanta, como muitas outras mulheres que tiveram coragem e entendem que precisamos aprender a “Brincar de Viver”.

"Quem me chamou

Quem vai querer voltar pro ninho

E redescobrir seu lugar

Pra retornar

E enfrentar o dia-a-dia

Reaprender a sonhar

Você verá que é mesmo assim

Que a história não tem fim

Continua sempre que você

Responde sim à sua imaginação

A arte de sorrir

Cada vez que o mundo diz não"

Não posso afirmar se essa é a história da atriz ou de onde ela tirou essa realidade vivenciada pela personagem, mas sei que é a história de muitas mulheres brasileiras. Inclusive é a minha história do passado quando, em uma cadeira de rodas, senti o peso das mãos de um homem que amei durante 17 anos.

Penso que é um espetáculo excelente para uma amiga que não percebeu que sua relação não é das melhores. Também para mulheres que estão em plenitude, para lembrarem e atentarem, como se fossem os anticorpos de uma vacina. Antes que tudo comece, que elas possam ser alertadas a um mal que pode derrubar qualquer uma de nós.

O teatro da atriz é encantador, a iluminação, os músicos no palco, a força dessas histórias contemplam novos ideais de vida. Izabela parecia antever a história de uma das maiores apresentadoras do país pedindo socorro por ser violentada por alguém que um dia também amou, chancelando a verdade da obra.

Um espetáculo simples, mas que fala tanto e traz aos ouvidos o que temos de melhor do nosso cenário musical.

Penso que a mensagem é muito necessária. Estamos todas debaixo de escombros, porque não é fácil quando ouvimos que uma de nós está sendo oprimida. É muito duro saber que do útero de uma outra mulher nasce um homem para violentar as nossas emoções.

Ainda bem que o teatro existe para mostrar a realidade nua e crua!

Ficha Técnica

Elenco: Izabella Bicalho

Direção: Sueli Guerra

Assistentes de Direção: Daniel Chagas e Lucas Leal

Direção Musical: Wladimir Pinheiro

Produção: Vanessa Cançado

Cenografia: Gisele Batalha

Figurino: Wanderley Gomes

Iluminação: Sergio Martins

Músicos: Wladimir Pinheiro (Piano)

Daniel Karin (Percussão)

Serviço

Teatro Vannucci

Temporada: Até 29 de Novembro

Horário: Quarta às 20h

Duração: 80 min

Classificação: 14 anos

https://bileto.sympla.com.br/event/87674/d/220203

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