Quanta beleza a atriz Rose Abdallah traz para os amantes do teatro!
Ofuscada pela fama do marido por dois séculos, só agora, com os movimentos de empoderamento feminino, a voz de Sofia começa a ser ouvida. Em “Só vendo como dói ser mulher do Tolstói”, uma atriz prepara-se para entrar em cena no papel de Sofia. No camarim, mistura a voz da personagem com sua voz feminista atual, indignada e revoltada com o escritor machista e abusivo. Além disso, a peça mistura também épocas e espaços (inícios dos séculos XX e XXI na Rússia e no Brasil).
Eu já conhecia a história de Sofia Tolstoi através do livro “50 clássicos que não podem faltar na sua biblioteca”, de Janes Gleeson. A dramaturgia está de acordo com a história dessa mulher.
No entanto, o diário da esposa de Tolstói foi escrito em espanhol e ainda não temos essa tradução em português. Essa também foi outra fonte riquíssima para essa belíssima montagem.
Rose não hesitou em dar à personagem características fortíssimas para uma mulher como Sofia, forjada no amargor de um relacionamento alimentado pela servidão do casamento.
A atriz parece ter rejuvenescido anos. Foi o que vi, tamanha força que ela traz ao palco. Rose veio dar trabalho aos jurados. Se, no meio do ano, assisti a Sirleia Aleixo em uma atuação visceral, no espetáculo “Furacão”, da Amok, Rose - como a esposa de Tolstói -, também chega ao mesmo patamar. Em 2023, posso afirmar que temos aí uma dor de cabeça para os que julgam teatro.
Tudo começa com uma personagem que entra no palco com uma indumentária contemporânea, desdenhando do imenso autor, contando as histórias que margeiam uma personalidade cruel.
Quando chega dentro da caixa cênica, começa a transfiguração para a Sofia da época. A encarnação começa pelas transformações visuais. Enquanto conta essas histórias para a plateia por trás de uma penteadeira vazada, vai se transformando.
O figurino e o cenário são assinados por Giovanni Targa, que simplesmente foi indicado pelo Fita para melhor figurino por um trabalho de excelência. O figurino está lindo, um deslumbre quando Rose acaba de se vestir como Sofia.
Ficamos embasbacados quando a indumentária está completa no corpo da atriz. O figurino traz verdade, uma espécie de tesouro do tempo. Com a iluminação muito bem posta, nos oferece um visual digno de palmas.
Já o cenário é composto por uma penteadeira antiga, mas com um trabalho riquíssimo de colagem de figuras que trazem Tolstói. Detalhe: essa penteadeira é levada de um lado para o outro, dando movimento ao espetáculo.
Um trabalho minucioso e muito caprichado, porque as fotos seguem um padrão de cores muito bem escolhido. As rodinhas do móvel - ou obra de arte - é de silicone, não trazendo detalhes que destoam. Belíssimo!
Penso que se eu escrevesse mais, ainda não seria suficiente. O profissional entendeu que o menos é mais. No entanto, não vi o menos, pois é um trabalho primoroso aos olhos de quem assiste.
“Os trajes pesados que remetem ao severo inverno russo são realmente incríveis! Mas dão muito trabalho! Que o diga a atriz Rose Abdallah que se despe em cena. O figurino, por si só, é um espetáculo, passando por vários séculos: 18, 19 e 21. As roupas são colocadas e trocadas durante a apresentação como camadas”
Vamos falar da iluminação. Quem acompanha essa coluna sabe que permeio em todas as salas teatrais que apresentam grandes e pequenas produções. Nas grandes, vejo a iluminação gritar. No entanto, é no monólogo que podemos entender um pouco mais sobre a iluminação. E o que dizer da profissional Evely Silva? Que ela é exageradamente perfeita!
Ela soube fazer a iluminação pousar no palco com tanta sofisticação que saí do teatro impactada com que vi. Evely usou refletores certos nos momentos corretos, uma luz que se move e traz ao espetáculo muita mais do que se espera. É tão dinâmica quanto a atriz que se movimenta no palco, deixando em evidência o que deve ser evidenciado. Sem mudanças de cor, sem efeitos, mas com elegância. Estou em êxtase até agora!
Rose REJUVENESCEU! A atriz defende sua personagem como uma leoa que defende seus filhotes, com exageros devidos, bem trazidos. A atriz cresceu maravilhosamente no palco, do início ao fim. Ela assegura ao espectador que a ida ao teatro vale a pena. Que obra, que arte, que fazer artístico brilhante!
Ela, como mulher, entendeu tudo que Tolstoi fez à sua esposa. Na verdade, Sofia era um tesouro nas mãos do artista, cujas letras não portavam de boa caligrafia. Sendo assim, a esposa fazia cópias de suas escritas, que os tornou ricos. Ela admirava os feitos do autor e deu a ele a ideia de transformar as novelas em livros. A imensidão da cabeça de Tolstoi não coube nele. Assim, se entrega ao devaneio de criar sua religião, criticando o Czar e os demais escritores, sendo respondido uma vez por Tchekhov. “Tudo bem pregar o amor, mas o que os pobres mais precisam são de bons hospitais, escolas decentes e liberdade para pensar o que quiserem. A lógica e o senso de justiça me dizem que há mais amor na eletricidade e no vapor do que na castidade e abstinência da carne.”
Enlouqueceu e, óbvio, levou a esposa a tentativas de suicídio. Mas ele se foi deixando milhões de seguidores.
“Ele se opôs à propriedade privada e à propriedade de terra, bem como à instituição do casamento, e valorizou os ideais de castidade e abstinência sexual. Essas ideais foram colocadas em prática pelo jovem Gandhi”
As ideias de Gandhi quanto a nós, mulheres, nasceu de Tolstói. Mahatma dormia com meninas para testar sua “santidade”, pois nós éramos consideradas, para ambos, culpadas pelo pecado do sexo. Nessas cabeças ultrapassadas e loucas devido à religiosidade desequilibrada, toda purificação do homem estava ligada à castidade. Para o inferno com tais ideais!
Rose inicia suas cenas narrando a história de Sofia (enquanto se veste da personagem), até que o sinal do teatro toca três vezes, refletores pares atrás da atriz se acendem e Rose dá vida a Sofia. Eis aí o teatro, que cena esplêndida!
A atriz usa inúmeros tons de voz e seu corpo fica à mercê das suas emoções e personagem. Uma obra que merece ser assistida por todos, até porque é atual. Quantas mulheres hoje não passam por situações como Sofia vivenciou?
Tenho vontade de escrever sobre as cenas, mas fica impossível eu desenhar, pois a dramaturgia é o diferencial que o espetáculo oferece. É o educacional que nós, mulheres, temos de nos apossar para não cair nas artimanhas dos homens. É literatura das melhores!
Nascido em 1828, em uma família aristocrática, Tolstói é conhecido pelos romances "Guerra e Paz" (1869) e "Anna Karenina" (1877), muitas vezes citados como verdadeiros pináculos da ficção realista. Ele alcançou aclamação literária ainda jovem, primeiramente com sua trilogia semi-autobiográfica, "Infância", "Adolescência" e "Juventude" (1852-1856) e por suas "Crônicas de Sebastopol" (1855), obra que teve como base suas experiências na Guerra da Crimeia. A ficção de Tolstói inclui dezenas de histórias curtas e várias novelas como "A Morte de Ivan Ilitch" (1886), "Felicidade Conjugal" (1859), "Guerra e Paz" (1869) e "Hadji Murad" (1912). Ele também escreveu algumas peças e diversos ensaios filosóficos.
Durante sua segunda viagem pela Europa, Tolstói foi influenciado política e literariamente por Victor Hugo. Essa influência ficou evidente na obra "Guerra e Paz" (1865), em que Tolstói descreve as batalhas de maneira semelhante a de "Os Miseráveis".
Ou seja, o espetáculo é um deslumbre de referências literárias, uma aula. Aliás, o jovem que participou do Enem teria excelente argumento diante do tema da Redação: "Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. Sofia criou os filhos sozinha. Amamentava ainda que doente e - pasmem! -, ele não a deixou operar o útero diante da descoberta de uma doença. Mas Sofia defendeu a vida.
A obra que está no Teatro Dulcina é uma das melhores que eu assisti esse ano.
A sonoplastia é do André Abujamra, que não precisa de apresentações. Ele é um astro nas composições.
Quanto à direção artística, esse é o profissional que ficou horas sentado à frente da atriz, enquanto a personagem era criada, vendo e revendo cenas. Posso dizer que Johayne Hildefonso tomou meu globo ocular (é responsável pela captação da luz refletida pelos objetos à nossa volta) e acertou o que eu queria ver e sentir. Acredito que a plateia também terá essa mesma percepção.
Penso que o teatro tem alimentado a nova geração de mulheres, educando e conscientizando aquilo que, de alguma forma, foi apagado. É o que pode-se concluir com essa obra. Sofia escreveu vinte e uma mil páginas somente do romance "Guerra e Paz". Então, ela tem também um certo mérito por essa obra.
Ao final do espetáculo, Sofia/Rose sai da cidade de Yasnaya Polyana para a estação de trem de Astapovo, onde morreu seu marido. Com os trajes que usam os russos, com um belo Ushanka (boina típica para proteção do frio usada pelos russos), mas foi proibida de se aproximar. Se não fosse seu diário, talvez jamais saberíamos desse momento tão covarde vivido por Sofia.
Tolstoi seguia o Domostroi, manual russo do século XVI, que orientava sobre a organização familiar e doméstica. Era para os senhores que gostavam de ter um açoite nas mãos! Que bacana, não?
Toda a história foi revelada por ela, assim como as fotos que ela mesma fazia questão de tirar, comprovando sua atuação como mulher, ao lado de uma dos maiores autores do mundo.
Excelente obra!
Ficha Técnica
Autor: Ivan Jaf
Direção: Johayne Hildefonso
Idealização e atuação: Rose Abdallah
Desenho de luz: Evely Silva
Visagismo e adereços: Ancelmo Salomão Saffi
Direção de arte: Giovanni Targa
Música original: André Abujamra
Cenários e figurinos: Giovanni Targa, Alessandra Miranda, Miguel Sasse e Ricardo Ferreira
Costureira: Edeneire Santos
Marcenaria: Alexandre Ramos
Direção de produção: Rose Abdallah e Sandro Rabello
Produção executiva: Márcio Netto / Ganga Projetos Culturais
Realização: Rose Abdallah / Abdallah Produções e Sandro Rabello / Diga Sim Produções
Serviço
Quarta e Quinta às 19h00
22 de Novembro a 7 de Dezembro
Teatro Dulcina - Rua Alcindo Guanabara, 17, Rio de Janeiro - Rio de Janeiro