Antes de tudo, é merecido apontar a grandiosidade deste artista. Amir não tem idade, ele é atemporal. Seu acolhimento é lindo, um homem de imensurável afeto. É disso que precisamos: desse calor e olhar amoroso para seguirmos a vida.
Amir, em seu livro “de todos os teatros”, com letras minúsculas mesmo, nos diz: “Meu teatro é um jogo em que há muita liberdade controlada por pouquíssimas regras”. Após assistir ao "cabaré" no Espaço do Tô na Rua, eu reafirmo as palavras escritas por ele.
No cabaré que ele supervisiona, os artistas da "Ópera das Malandras in Concert" alçam vôos como querem, com toda a liberdade que possa existir em seus pensamentos e em seus corpos. São provocativos e transgressores, ao contrário de alguns que defendem um estilo mais “comportado”.
Amir acompanha as duas horas do show rindo e se divertindo junto à plateia. Eu, em um dos dias mais quentes da cidade do Rio de Janeiro, tive a oportunidade de conhecer o espaço e o trabalho em que Amir acolhe jovens artistas.
Amir Haddad. Foto: Divulgação
Eu gosto do estilo cabaré, porque dele suscita a verdade que, muitas vezes, afeta os medíocres de ideais. Estudei um pouco do cabaré com a Christina Strava, professora da Unirio, que luta a favor do resgate do "cabaré brasileiro". Foi com ela que entendi o perigo do cabaré nos governos autoritários. Isso não é oportunismo da professora. Afinal, a primeira investida de Hitler na Alemanha foi derrubar os grandes teatros de cabaré daquele país, durante a segunda guerra mundial, enviando os artistas homossexuais para os campos de concentração. E por que essa atitude tão boçal em relação a esses atores e atrizes? Simples: eles têm o poder de encantar, trazer verdades através do riso, do opróbrio. Isso enfeitiça, ao menos traz reflexão. Neste cabaré da Lapa é possível construir fios de pensamentos que corroboram para uma sociedade mais diversa.
Diante de figurinos estranhos, bem estranhos, com um misto entre meias rasgadas e brilho, é possível ver beleza e muita verdade.
Em uma das cenas, por exemplo, sob a música “New York, New York” na voz de Frank Sinatra, um artista, Evandro Castro, chega ao palco com calças que nos remete à bandeira dos Estados Unidos. Logo atrás, uma atriz, Amna Asad, com uma mão imensa ensanguentada nas costas, na cabeça um lenço de Yasser Arafat e, em uma das mãos, um livro escrito "Gaza", deixa claro o posicionamento dos artistas quanto à atrocidade que acontece na Faixa de Gaza, onde uma etnia têm sido assassinada.
Inclusive, uma poetisa e escritora morreu durante o bombardeio, aos 32 anos...
Um escritor e jornalista brasileiro, Cesar Calejon, lamentou este óbito.
"Uma das poetisas e romancistas feministas mais talentosas de Gaza, Heba Abu Nada, foi assassinada durante o genocídio israelense contra o povo palestino. Pouco antes de ser morta, ela escreveu: 'Se morrermos, saibam que estamos satisfeitos e firmes, e digam ao mundo, em nosso nome, que somos pessoas justas, do lado da verdade'. Seu último poema foi escrito antes de ser assassinada em meio ao genocídio de Israel contra a Palestina: 'A noite na cidade é sombria, exceto pelo brilho dos mísseis; silencioso, exceto pelo som do bombardeio; aterrorizante, exceto pela promessa tranquilizadora da oração; escura, EXCETO PELA LUZ DOS MÁRTIRES. Boa noite'", escreveu Calejon.
E segue o teatro defendendo a arte da artista morta. Para isso serve o cabaré. Chorei, porque tudo faz sentido.
Outra cena que apreciei foi com a música “Vá Morar com o Diabo”, na voz da Cássia Eller. Uma atriz negra, Renatinha Bronze, se apossa de uma peruca da corte com fios brancos e começa a cantar a canção, “a nega lá em casa não quer trabalhar”. Sensacional, porque já não cabe mais ao negro a escravidão. Ah! E nem à mulher, que fique claro também!
Outra cena que deixou a plateia impactada foi o deleite com a música “Geni e O Zepelim”, de Chico Buarque. Toda a canção tem encenações muito bem dramatizadas, cheias de verdades, trazendo uma sociedade hipócrita, como sabemos. Incrível a beleza do ato. A personagem Geni é interpretada por Máxima, com muita personalidade, claro! Não podemos apagar Nando Rodrigues descendo do Zepelim e abusando da Geni. Cena forte, trazendo um pesar em nós. Nesse ato lembrei-me de Victor Hugo em “Os Miseráveis”, mais precisamente a personagem Fantine, que se tornou prostituta por não ter outra opção de sobrevivência. A cena mexeu comigo. Tudo que, de alguma forma, se apossa de um outro corpo com brutalidade me traz sensações ruins, mesmo sendo teatro.
No cabaré também temos Carol Eller, que se diverte no palco com os colegas de trabalho. Foi no ato dela que ouvi “para trabalhar com o amor, precisa-se esquecer o amor”. Essa é a orientação quando a moça resolve ser uma profissional do sexo.
Nessa noite, o cabaré teve três convidadas. Uma delas, Elisa Lucinda, que cantou e declamou suas poesias. Numa das letras, ela falou sobre os orixás, uma graça de canção.
Giovana Pires foi outra convidada. Ela trouxe uma poesia dedicada às mulheres, onde uma frase mexeu muito comigo: “mulher sangra sem machucar”. Sim, sangramos com nossos corpos e também com nossas almas! A poeta declamou um verso em cima de um banco, com uma saia imensa, que as pessoas ajudavam a balançar. Tive a sensação que, dentro da artista, a poesia corria com o sangue nas veias e desabrochava como rosas de sua boca. Que sensação linda!
Finalizo o trio das estrelas convidadas com Rossana Rússia. Ela encanta nas cenas, com sua voz potente. A atriz é de ponta. Esteve em grandes espetáculos no Armazém da Utopia. Ela é inesquecível! No entanto, jamais imaginaria ela ali, naquele espaço, onde o teatro burguês não tem vez!
Valeu muito minha ida ao teatro do Amir e seus pupilos, na companhia da Maria Helena, que nos atende com carinho. Pode faltar algumas coisas no espaço, mas o acolhimento dessa mulher é suficiente para nos sentirmos bem!
Estar ali é um ato de resistência, tanto dos artistas quanto dos espectadores. Certamente que estar presente naquele local é o mesmo que defender a vida e a inexatidão do ser humano. Foi uma experiência fantástica, um aprendizado de como devo ser hoje e no futuro. Olhar para Amir Haddad é olhar para o futuro. O que digo aqui só é compreensível para aqueles que entendem de liberdade e plenitude!
Evoé!
Sinopse
Na Lapa, reduto da boemia carioca, a trupe do Cabaré Tá na Rua traz à cena 'Ópera das Malandras: In concert'. Uma revista musical em dois atos inspirada em Bertolt Brecht e nos cabarés de todos os tempos. Um mergulho nas entranhas do cabaré resgatando sua essência libertária, indigna e subversiva.
A dramaturgia se passa num antigo cortiço na Lapa e revela a exploração do humano pelo humano. O público é transportado numa viagem musical que passa por pérolas da música popular brasileira até grandes clássicos dos musicais, enquanto a trupe transforma cada canção em um número espetacular e irreverente.
"Ópera das Malandras" é um convite para celebrar a transgressão e vivenciar a magia do cabaré, em que você se torna parte da revolução cênica que se desenrola diante de seus olhos. Uma experiência em constante evolução, onde humor, música e espontaneidade se fundem, trazendo uma reflexão mordaz sobre a condição humana.
Serviço
"Ópera das Malandras In Concert"
24/novembro, às 20h00
Local: Casa do Tá Na Rua - Av. Mem de Sá 35, Lapa - RJ
Atuação e direção: Máximo Cutrim, Carol Eller, Nando Rodrigues, Evandro Castro Neto, Amnah Asaad e Renata Batista,
Supervisão: Amir Haddad
Direção de produção: Maria Ines Vale
Programação visual: Leandro Felgueiras/Farpa
Iluminação: Paulo Denizot
Preparação de voz: Adriana Micarelli
Classificação: 16 anos