“No Rio de Janeiro, a Rua do Ouvidor, cenário de reuniões de políticos e intelectuais do momento, das confeitarias famosas, das melhores lojas, da irradiação da moda e dos novos comportamentos, tornou-se palco das primeiras exibições cinematográficas”
Esta é uma frase do livro “Estrelas do Cinema Mudo”, que ganhei do Museu da Imagem e Som em uma das minhas visitas ao espaço, que - inclusive - editou o livro junto à Escola de Comunicação da UFRJ. Justifico a frase quando penso sobre o espetáculo "Atlântida", que está em temporada no Teatro Dulcina, também no Centro, bem próximo à Rua do Ouvidor.
Escrita e encenada pela primeira vez há mais de 20 anos, "Atlântida – O Reino da Chanchada", de Ana Velloso e Vera Novello, ganha montagem inédita e um novo título.
A Atlântida Cinematográfica foi uma companhia brasileira fundada em 18 de setembro de 1941, no Rio de Janeiro, por Moacir Fenelon (Moacyr Fenelon de Miranda Henriques) e José Carlos Burle. Produziu um total de 66 filmes até 1962, quando cessaram suas atividades, tendo-se transformado na mais bem sucedida fábrica de produção de filmes do Brasil.
Estreou com "Moleque Tião", com Grande Otelo, frequentemente citado como um dos mais importantes atores da história do Brasil.
Para nossa sorte, temos um tema diferente, bem abrasileirado, no cenário teatral. Super indico, por ser bom, muito bom.
São oito excelentes artistas no palco, os quais merecem ser evidenciados, para não dizer celebrados. A dramaturgia é leve, sem maldade. Junto às gostosas atuações do elenco, resultam em um espetáculo bem-vindo.
Marly, uma garota ingênua do interior que sonha em ser artista de cinema, vem para o Rio de Janeiro tentar a sorte. Ela consegue uma vaga como corista em um filme da Atlântida Cinematográfica. Durante as filmagens, Marly acaba se apaixonando pelo diretor de cinema Luiz Alberto. O romance dos dois ganha força quando Luiz salva a mocinha das garras do perigoso bandido Navarro, que invade a Atlântida atrás de uma joia valiosa, roubada de uma joalheria, que - por engano - foi parar em um dos depósitos dos cenários dos filmes. Uma seleção de canções - icônicos números musicais que foram sucessos da Atlântida - embala a trama.
Temos no cenário Natália Lana. Como sempre, ela sabe trazer ao palco a estrutura certa para os atores atuarem. É um palco alto, onde artistas sobem e descem para apresentar cenas musicais, chamando a atenção da plateia. Cortinas no alto do palco mudam de cor através da iluminação. Não entendi o motivo da cortina fechada, que não evidenciava os músicos, mesmo tendo, no espaço, dois lustres suntuosos. Essas cortinas são transparentes e deixaram o público ciente que tinha gente ocupando aquele lugar. Confesso que fiquei aguardando a cena para ver o que aconteceria naquele espaço.
Conversei com Natália Lana sobre isso e ela respondeu que a tela de tecido justificava esconder os músicos. Mas creio que ficaria bacana os músicos aparentes, seria melhor que tentarmos descobrir o que se passa naquele espaço.
O cenário contribui bastante para o dinamismo da peça.
Falando em músicos, senti falta de um chocalho, uma percussão a mais em algumas músicas.
A iluminação de Aurélio de Simoni é sempre bem feita, apagando quando é preciso e focando no artista quando necessário. Para quem tem o nome registrado no livro “A História do Teatro no Rio de Janeiro”, da crítica Barbara Heliodora, que revela que o profissional Simoni é exemplar e talentoso, óbvio que assistimos ao espetáculo sabendo que o trabalho é perfeito!
Durante a pandemia, tive aula de figurino com Ney Madeira. Ele fez uma boa pesquisa de desenhos e cores, indumentárias preciosas, posso dizer que belíssimas, que nos impactam. Os brilhos chegam no momento certo, nada demodê. Muitos poás, transparências bem colocadas, saias godês que dão movimento às cenas, além de laços e golas bem postas. Cortes bem feitos, nos fazendo voltar à década de quarenta. Quanto aos figurinos masculinos, outra façanha do figurinista. Os casacos bem postos, inclusive quando um dos personagens, o vilão/antagonista, entra no palco, me remeti ao livro "Agosto", de Rubem Fonseca, que se passa também no Rio de Janeiro, uma obra cheia de vilões, que sintetiza a morte do presidente Getúlio Vargas. As cores escolhidas para essas indumentárias são sóbrias e sem arranhões.
Vamos falar dos responsáveis dessa beleza?
O diretor de movimento e artístico Édio Nunes não peca. Ele está no palco e abro uma aspas aqui. “Édio, sei bem que o teatro precisa dos seus serviços por trás, nos bastidores, mas meu querido, o palco é o seu lugar!”. O artista é uma explosão como ator teatral, é responsável por risos, magnetiza a cada aparição. Impossível não se render a ele. O tom de voz, o corpo, tudo dele é entregue ao papel. Assistir Édio Nunes é PRAZEROSO. Penso que, mais uma vez, ele me presenteou com outro personagem muito bem desenhado, se atreve e acerta quando traz alguns personagens ao palco, porque em cada um deles há um diferencial, não são iguais, é uma dádiva do artista. Ele é como um arco-íris. Embora seja UM arco-íris, tem cores diferenciadas, mas que estão no mesmo lugar na intenção de mostrarem-se juntas. É isso: arco-íris Édio Nunes!
Ao apresentar um solo, traz um samba ou gafieira, não sei discernir, com fidelidade e beleza corporal que inflama benignamente a cena. Um show à parte!
Milton Filho foi indicado ao Prêmio Shell em 2022. Não foi à toa: sabemos que o artista é um dos mais completos do cenário teatral do estado do Rio de Janeiro. Quase impossível ir ao teatro e ver uma atuação mediana do artista, pois ele recompensa aqueles que amam as artes cênicas. Eu não sabia da potência vocal dele, que é imensa. O corpo atua com imensa beleza, tem ginga de sobra, além de grande simpatia com a plateia. Algumas interseções que ele faz com o espectador, são bem feitas, de muito bom senso. Vale mencionar a cena em que Milton Filho apresenta-se de Julieta ao lado do belíssimo artista Hugo Kerth. Basta que ele entre no palco para que risos sejam ouvidos vindos da plateia.
Daniel Carneiro, Fábio D'Lelis e Hugo Kerth são três grandes estrelas. Fábio me leva à palavra elegância: sua voz e comportamento postural em cena caem como uma luva. É sempre ponderado, vê-lo atuar é sempre muito bom. Hugo tem uma voz belíssima e também se banha na comicidade. É um ator mergulhado na genialidade, pois entende como atuar sem alterar sua essência. Também entende a beleza da sua voz. Mesmo com um currículo notável, ainda sabe dividir palco com os colegas. Já Daniel Carneiro é um ator muito ponderado, no entanto rico no seu fazer cênico. A plenitude desagua do ator no palco. Três grandes artistas, a meu ver.
Quanto a elas…
Cassia Sanches está no lugar certo, com a personagem certa. Ela se casa perfeitamente ao papel que lhe foi ofertado. Uma atriz doce, que apresenta uma personagem tão adocicada quanto. Uma voz gostosa, com movimentos leves e sutis, uma maravilha de atuação. Uma mocinha/protagonista que atua muitíssimo bem, talvez pelo dengo muito bem implantado na personagem que ela defende. Chega do interior e luta por um papel na Atlântida. A atriz sonha em ser como a atriz Eliana e, assistindo a alguns vídeos, é possível ver algumas semelhanças físicas.
De Patricia Costa para Patrícia Costa, posso dizer que uma fera cênica desperta no palco, sem agressão, muito pelo contrário, atua ao lado do artista Milton Filho, excelente par. Patrícia tem uma voz linda e movimento corporal que transcende. Em seu papel, me revela uma fortaleza artística muito potente. Percebi que ela cresce com natureza em algumas cenas, sem imposição, pois isso é intrínseco nela. Atua com força!
“Atuar para poder voar”. Parece que a frase, tão conhecida pelos fazedores de teatro, pousa sobre ela.
Ah! Lu Vieira…
O que falar dessa atriz? É dela que nasce uma candura, uma simpatia, posso dizer que a representação da graciosidade. Uma voz que faz bem à alma. Uma interpretação deliciosa de se assistir. Lu, ao lado de Hugo Kerth, transborda de beleza em todos os sentidos. Ela está lindíssima, posso dizer que em todos os sentidos também. Uma atuação legitimamente meiga, sutil, tão bem empregada à personagem que alcança e conquista a plateia. Sem contar a voz, que é um desbunde. Uma personagem alegre que faz-se amiga da protagonista, cheia de sororidade e afeto. Lu é preciosa, com o dom da sedução. Cuidado ao assisti-la: possivelmente você pode sair apaixonado!
Ana Velloso e Vera Novello são as idealizadoras, produtoras e dramaturgas. Cabe agradecer a elas pela ideia de nos presentear com o nosso passado, com o passado do cinema brasileiro, que é riquíssimo.
Assim como agradecer por um elenco bem diverso, com representatividades que trazem a verdadeira face do povo brasileiro, sobretudo o carioca.
“Visitamos o passado, com muita admiração e orgulho destes artistas brasileiros. A Atlântida Cinematográfica é uma referência muito forte para o cinema nacional. E precisa continuar viva na memória do público. Eles faziam filmes com poucos recursos, se comparados às produções hollywoodianas da época, mas não faltava talento e criatividade àqueles artistas que continuam inspirando quem faz humor, hoje, no teatro, no cinema, na TV, e até na internet. Oscarito e Grande Otelo – e tantos artistas da Atlântida – merecem um lugar especial na história do musical brasileiro, seja no palco ou na tela”, afirma Vera Novello.
Ambas estão no elenco. Uma cena de Vera é bem- vinda: quando ela, na personagem da dona de uma pensão, o que era normal na época, resolveu limpar o quarto do antagonista Édio. O personagem entra no quarto e encontra Vera. Na narrativa do texto, a personagem de Vera leva o assunto para o lado malicioso. Ótima cena!
É uma peça bem gostosa de assistir!
Para os estudiosos, segue vídeo que apresenta filmagens bem interessantes:
SINOPSE:
“Atlântida – Uma comédia musical” traz momentos antológicos dos filmes da Atlântida Cinematográfica, ao revisitar seus mais icônicos números musicais. Abrangendo amplo universo musical, o roteiro mostra a grandeza e variedade das trilhas dos filmes da Atlântida. O samba e a marcha – que, ao contrário do que se pensa, não predominavam nos filmes da Atlântida – brilham ao lado de sambas-canções, xotes, boleros, rumbas, serestas... um caldeirão musical da melhor qualidade. E além de relembrar as inesquecíveis canções que foram sucessos na época como “Marcha do Gago” (Clécios Caldas e Armando Cavalcanti), “No Tabuleiro da Baiana” (Ari Barroso), “Alguém Como Tu” (José Maria de Abreu e Jair Amorim), “Beijinho Doce” (Nhô Pai) e “Vai com Jeito” (João de Barro), o público poderá rever trechos de filmes e ver imagens inéditas dos artistas e bastidores desta importante fase do cinema nacional.
ROTEIRO MUSICAL
Comigo Não, Comigo Sim (Oscarito)
Inflação de Mulheres (Mario Pinto e Erastóstenes Frazão)
Seu Romeu (Ruy Rei e A. Silva)
No Tabuleiro da Baiana (Ary Barroso)
Flor Amorosa (Catullo Cearense e Callado)
Beijinho Doce (Nhô Pai)
Chove lá fora (Tito Madi)
Bate o Bombo Sinfrônio (Humberto Teixeira)
Malandrinha – (Freire Júnior)
Escandalosa (Djalma Esteves e Moacyr Silva)
Mambo Caçula (Benedito Macedo e Bené Alexandre)
Alguém Como Tu (José Maria de Abreu e Jair Amorim)
Pout Pourri de Marchinhas - Vai com Jeito (João de Barro); Tomara que Chova; Marcha do Neném; Marcha do Sapinho.
Trabalhar Eu Não (Almeidinha)
Mocinho Bonito (Billy Blanco)
Marcha do Gago (Clécius Caldas e Armando Cavalcanti)
Rio de Janeiro – (Ari Barroso)
FICHA TÉCNICA
Texto: Ana Velloso e Vera Novello
Direção Artística: Ana Velloso e Édio Nunes
Elenco: Ana Velloso, Cassia Sanches, Daniel Carneiro, Édio Nunes, Fábio D'Lelis, Hugo Kerth, Lu Vieira, Milton Filho, Patrícia Costa e Vera Novello
Músicos: Ricardo Rente, Vitor Barreto e Fábio D’Lelis
Direção Musical e Arranjos Vocais: Ricardo Rente
Cenário: Natália Lana e Marieta Spada
Iluminação: Aurélio de Simoni
Figurino: Ney Madeira – Espetacular Produções
Coreografia: Édio Nunes
Preparação Vocal: Débora Garcia
Engenheiro de Som: Branco Ferreira
Produção Executiva: Ana Velloso e Vera Novello Assistente de Produção: Clara Rente
Estagiários de Produção: Vinícius Lavall e Érick Villas
Direção de Produção e Realização: Lúdico Produções
SERVIÇO
"Atlântida – Uma Comédia Musical"
Local: Teatro Dulcina
Endereço: Rua Alcindo Guanabara, 17 – Centro (próximo à Estação do Metrô Cinelândia)
Período: Até 16 de dezembro de 2023
Dias e Horários: sextas e sábados às 19hs e domingos às 18hs
Sessões Extras: Matinês nos sábados, 02, 09 e 16 de dezembro às 16:30h
Preço: R$ 50 (inteira) e R$ 25 (meia-estudantes e idosos)
Capacidade: 429 lugares
Classificação: Livre
Duração: 90 min
OBS:
*Não haverá espetáculo no dia 15/12/2023 (sexta-feira)
*Sessões com tradução em Libras e Audiodescrição nos dias 09 e 16/12 (sab) - 19h