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"Gente de bem": humor crítico transforma riso em reflexão

Olhar Teatral, Por Paty Lopes, Crítica Teatral

Em 27/11/2023 às 09:03:04

Mais uma vez fui surpreendida pelo teatro. Uma segunda-feira sem muitos atrativos, tempo chuvoso, resolvi sair de casa e ir ao teatro. Para minha surpresa posso dizer: fiz a coisa certa!

Nesse dia conheci Claudia Chaves, única crítica que ainda escreve para um jornal impresso. Conversamos um pouco e isso me fez entender um pouco mais sobre a responsabilidade de escrever para um veículo de comunicação, no caso o Portal Eu, Rio! Uma dessas responsabilidades é trazer veracidade, neste caso do espetáculo “Gente de Bem”, no Centro Cultural do Banco do Brasil, para meus leitores.

Sabemos que o teatro carioca, o qual frequento, tem deixado a desejar com alguns espetáculos que oferecem "mais do mesmo". É uma mesmice chata e sem criatividade, que provoca até mesmo pavor aos críticos da cidade, infelizmente. Aliás, penso que não é a questão do tema em si, mas sim a forma de abordar as pautas. Quando estamos diante de peças que falam tudo que precisa ser dito sem violentar os ouvidos (e também a nossa paciência), damos vivas e desejamos reverberar a montagem a qualquer custo. Esse é o caso do espetáculo “Gente de Bem”.

“Gente de Bem" aposta no humor crítico, no olhar certeiro que aponta para o que há de mais ridículo nesses personagens, transformando o riso em reflexão. A escolha pelo viés do humor é uma escolha política. O humor penetra por poros que a razão talvez não alcance. Asco, Uísque, Café, Soro, Esgoto e Urina: são seis contos de João Ximenes Braga que nos convidam a refletir sobre nós e nossa sociedade.

Através de um recurso cênico do teatro épico contemporâneo, a teatralização acontece, construída a partir da performance do ator-narrador. Uma beleza de se ouvir!

E acontece de forma diferente, com leveza e comicidade. Artistas potentes e bem ensaiados se desdobram em vários personagens. São quatorze artistas no palco, que dão conta do recado com beleza cênica de sobra para dar e vender.

Não temos muitos elementos do teatro como cenário e figurinos ostentosos, mas temos artistas que nos prendem a atenção durante TODO O ESPETÁCULO, tamanha a eficiência que brota de suas performances. É bom demais assisti-los!

Fica difícil apontar qual deles sobressai mais, porque estão nivelados. É uma ousadia da direção apostar em colocar tantos artistas no palco e eles entenderem seus personagens, transformando os desafios em atuações prodigiosas.

São cenas defendidas com habilidade, entre elas a das atrizes que são vizinhas, com diferentes posições políticas, um desbunde de atuação das atrizes Ana Achcar e Dada Maia. Penso ser essa uma das melhores cenas, comose as demais também não fossem tão boas... (risos).

As seis cenas curtas estão no nosso cotidiano, ou seja, temos aí temas já abordados e que precisam estar no teatro, mas empregadas com sapiência.

Um dos contos traz uma cena que aborda o racismo, quando um pai é apresentado à namorada negra do filho. Pamela Alves nos oferece uma aula que explica o que é ancestralidade e antepassado. Xando Graça dá um show de interpretação. O tom de voz e a expressão facial do artista são transbordos quase inigualáveis de teatralidade. Já o assisti em outros espetáculos, mas tenho para mim que, nesse, ele abusou das suas performances.

A cena do condomínio me apresentou Mariana Consoli, com um corpo que está a serviço de um bom teatro. Como porteira, ela faz rir e mostra sua forma bela de encarnar um excelente personagem. Nesse conto, a homofobia é apresentada. Tudo muito rico em detalhes, os quais os próprios preconceituosos não se enxergam.

A cena da escravidão, que ainda permeia o seio da sociedade, é muito forte e repetida, talvez para que as pessoas entendam a desgraça que ainda vivenciamos. A atuação de duas atrizes impacta. Stefania Corteletti traz excelência em sua atuação como escravizada.

Camila Boer, na cena do repórter morto, é lindíssima. Ela entra trazendo seus olhares. Rica personagem, sem contar na cena da cafeteria, onde aparece como narradora dos fatos ocorridos entre as pessoas que estão naquele estabelecimento comercial.

Todos os artistas estão de parabéns. Não tenho como escrever sobre todos eles, mas posso dizer que são fagulhas que incandescem a obra. São todos sofisticados em suas atuações, precisos e hipnotizantes.

A obra passa rápido, tem o timing certo para terminar, não há fadiga. Muito pelo contrário, há dinamismo em todo tempo

Uma adaptação perfeita do texto.

Narrativas que são acessíveis para todos, para entendimento de todos. Julgo isso de um bom senso imenso. Atirar no pé não vale a essa altura do campeonato. Se tivemos quatro anos de um governo estúpido, que concordava com tipos de personagens estúpidos que estão no palco, temos de aproveitar para educar o público enquanto podemos, não espantá-lo do teatro com textos sem pé nem cabeça, que em nada auxiliam. Essa responsabilidade é de todos nós, para não nos amargurar mais uma vez.

O teatro tem uma grande importância para a sociedade. Ele tem a capacidade de levar à reflexão e, possivelmente, trazer uma mudança comportamental, o que vejo com bons olhos. A montagem apresenta diversas pessoas com atitudes cruéis e é possível que parte do público aprenda sobre o mal que faz o racismo, a homofobia, a escravidão de pessoas, a depressão e ansiedade, o quanto faz mal às pessoas que carregam esses sentimentos obscuros. Tudo é bem definido no espetáculo. Um verdadeiro show que mostra pessoas que, nos últimos anos parecem ter se mostrado mais. Por pior que pareçam ser, se multiplicam e acham belo serem egoístas e preconceituosos. Mas a luta continua e está dentro de cada um de nós para a transformação de um mundo mais inclusivo e diverso. Uma diversidade que possa ser livre de julgamentos é o que precisamos. A peça fala sobre isso e evidencia como certos comportamentos não enriquecem, somente destroem relações.

Os figurinos alimentam os personagens, mas nada suntuoso. O cenário conta com bancos e uma mesa, além disso somente a eficiente iluminação fala. Um dos melhores espetáculos de 2023. Quanto ao texto lembrei-me muito de Adalberto Neto com a dramaturgia "Fabulosa Fábrica de Música", que também trouxe temas como adoção, homossexualidade e separação com muita graça e beleza.

Falar sobre qualquer assunto pode e deve, desde que saibam falar.

É um espetáculo vivo e coerente, com notas de sentimentos bons e ruins, que faz rir e provoca questionamentos. Confesso que eu adorei, por ser inteligente e diferenciado de tudo que tenho visto!

O artista, quando entende de expressão facial, tom de voz, expressão corporal e se aprofunda em seu personagem, traz ao espectador prazer. Exatamente por isso que escrevo sobre teatro: pela provocação bem atenuada que me fizeram, através das artes cênicas, de cada um deles no palco, sem tantos elementos do teatro para ofertar, mas com o corpo entregue como uma divina oferenda!

Sinopse:

O livro “Necrochorume e outros contos” de João Ximenes Braga, um dos mais importantes escritores da televisão brasileira, norteia a peça Gente de Bem, da Cia. Comparsaria Teatral e traz, pela primeira vez, um texto do autor para o teatro. São seis histórias curtas retiradas literalmente da publicação de 2021 que retrata personagens e situações típicas da classe média branca brasileira. O resultado mostra crônicas de nossa época, escritas a quente, como apontamentos sobre absurdos registrados pelo autor no dia a dia, seja observando situações, diálogos, atitudes, o preconceito, os atavismos, o racismo, a homofobia e o conservadorismo das pessoas.

Ficha Técnica:

Elenco: Adriana Maia, Alexandre Damascena, Ana Achcar, Anna Wiltgen, Camí Boer, Dadá Maia, Gilberto Goés, José ngelo Bessa, Mariana Consoli, Miguel Ferrari, Pamela Alves, Stefania Corteletti e Xando Graça

Texto: João Ximenes Braga

Direção: Adriana Maia

Direção Musical: André Poyart

Cenografia e objetos: Cia Comparsaria Teatral

Figurinos: Nello Marrese (colaboração)

Iluminação: Anderson Ratto

Direção de Produção: Dadá Maia

Uma produção de Ciranda de 3 - Trupe Produção e Comparsaria Teatral

Serviço:

Gente de Bem

Espetáculo da Cia. Comparsaria Teatral

Temporada – Até 18 de dezembro de 2023

Sexta, sábado e segunda às 19h, domingo às 18h

Classificação Indicativa: 12 anos

Duração: 80 minutos

Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro - Teatro III

Capacidade: 86 lugares

Endereço: Rua Primeiro de Março, 66

Centro – Rio de Janeiro

Contato: (21) 3808-2020 | [email protected]

Mais informações em bb.com.br/cultura

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Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia), emitidos na bilheteria física ou site do do CCBB - bb.com.br/cultura

Meia-entrada para estudantes e professores, crianças com até 12 anos, maiores de 60 anos, pessoas com deficiência e seus acompanhantes e casos previstos em Lei. Clientes BB pagam meia entrada pagando com Ourocard.

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