“Isabel das Santas Virgens e sua Carta à Rainha Louca”, da obra de Maria Valéria Rezende, finalista do Prêmio Jabuti 2020, com direção de Fernando Philbert e idealização/adaptação/atuação de Ana Barroso. O texto ficciona a história real de uma mulher do final do século XVIII acusada de loucura e rebeldia, enclausurada no convento do Recolhimento da Conceição, em Olinda, Pernambuco. Através de uma carta, ela tenta se comunicar com a Rainha Maria I de Portugal, conhecida como a "Rainha Louca", com quem se sente irmanada na opressão pelo mundo dos homens, e de quem espera receber clemência e liberdade. A carta relata os destemperos e injustiças praticados pelos homens de poder contra mulheres, escravizados e todos que se encontravam em situação de vulnerabilidade. Entre perdas e amores proibidos, a saga de Isabel passa por períodos em que assumiu uma identidade masculina para conseguir viver da única coisa que sabia fazer: ler e escrever.
Ana Barroso é a atriz que interpreta Isabel das Santas Virgens, que não está mais em temporada. Precisamos torcer para que volte em 2024, porque Ana sabe fazer um teatro elegante, belo e coroado de simplicidade. Até mesmo pelo local onde estava, com poucos lugares. Mas não vou deixar de mencionar, pois a obra pode estar sendo apresentada na sala do trono do Museu Nacional ou exatamente ali, no Espaço Abu, em Copacabana. Isso é indiferente. O importante mesmo é quando uma obra nos toca. Quando a beleza e toda devoção de uma atriz nos induz a mergulhar com ela na personagem, é isso que acontece.
Com o passar do tempo, vamos conhecendo as pessoas, suas identidades e, de alguma forma, a definimos. Assim tem sido meu caminhar no teatro. Fernando Philbert tem crescido a cada viagem que faço diante dos trabalhos dele. Esse diretor tem uma forma peculiar de trabalhar, suas peças sempre são um transbordo de refinamento. Este ano, tive a sorte de assistir a três espetáculos por ele orquestrados. Os três mexem conosco, são premiados. Penso que, às vezes, ele atua como uma bailarina com todo glamour e leveza necessários. Mesmo diante de uma peça mais áspera, como "Órfão", é possível notar beleza e harmonia entre as cores levadas para as cenas. Philbert tem se tornado, para mim, um profissional do teatro cada vez mais importante por sua delicadeza de expor suas ideias.
A obra é fruto de um texto lindo e emocionante. Uma mulher que passa por tantas desventuras a levando a pesadelos sem que fechasse seus olhos. Algo tão dolorido, mas cheio de poesia. Fico me questionando: como é possível, diante de tanta lamentação e intempéries, criar um texto que deságua na doçura da fé?
A iluminação parecia dançar junto à atriz, acendendo e apagando. Era só Ana se movimentar que a luz vinha com ela. Vilma Olos fez um trabalho muito sutil porque o espaço é pequeno. Perder a mão não seria muito difícil. Sem paletas de cores, apenas a intensidade. Quando menos é mais e a sofisticação agradece. É isso.
Já Natália Lana, ao lado do diretor, não peca. Ambos estão se tornando "Romeu e Julieta do Teatro", pois os espetáculos dirigidos por ele, com cenografia dela, parecem se casar sempre. Ela é uma querida, sempre assertiva, tem um currículo invejável por megaproduções. Dessa vez, ela foi minimalista como deveria ser. Grande logos de papéis caíam do teto de uma vara cênica. Escritas, algo que eu não consegui discernir. Uma mesa e uma cadeira, de onde Isabel contava sua história, estavam localizadas no meio do palco.
O figurino, em tons nudes ou off white (não sei o termo certo), com peças mais marrons, caíram muitíssimo bem. Botas envelhecidas e algumas rendas no tecido da indumentária, de alguma forma me levaram a um tempo do passado. O corpo longilíneo da atriz ficou bem naquele figurino. A postura alongada dela também. Tudo parece se abraçar e as bodas são comemoradas.
A sonoplastia também foi bem acolhida. O erudito tocado é o suficiente para dar à obra um grau ainda maior de onipotência. Em nenhum dos elementos, a obra cai a contragosto de um amante do teatro. Porque há na obra uma inquietação de fazer bem feito por parte da atriz. Nota-se o cuidado dela ao ler alguns atos. Sua voz aveludada, como uma corneta real, antevendo cenas que nos engolem, abrindo o caminho para um conteúdo de informações desgraçadas, porém contando com um requinte de nobreza de uma atriz apta no palco.
Uma das coisas que não posso deixar de pontuar é como o teatro abre as portas da verdade. Hoje sofremos tanto por causa de um patriarcado, um dia defendido por muitos em nossa sociedade, refletido ainda hoje. Nós, mulheres, pagamos ainda esse peso desconfortável de sermos "mulheres". Parece que já nascemos marcadas para sermos levadas aos propósitos mais amargos da vida. Se, por um lado, a família diz proteger as filhas, por outro elas perdem a liberdade de serem quem gostariam de ser. Tudo parece seguir uma ordem contra a almejada liberdade. Sou uma mulher sem filhos e solteira e adoro estar nessa situação. A situação que não gosto é a da mulher em vulnerabilidade. Esta semana, por exemplo, tivemos um professor que ensinava aos alunos como violentar um cadáver de uma mulher bonita. Bem, senhores, isso não aconteceu da noite para o dia. Isabel, segundo a história contada, também passou por situações tenebrosas, assim como a sinhá que ela cuidava, independente da classe social. Era necessário que a mulher seguisse normas para que não fosse levada às mais cruéis sanções que um ser humano pode ser levado. Sim, sofremos muito no passado e continuamos a sofrer. Parece uma maldição, mas não nos dobramos, continuamos na luta da Isabel de encontrar a liberdade, o direito de amar, o direito de ser feliz, talvez de seguir a fé que ansiamos.
Uma forte ferramenta de Isabel era o saber escrever. Nada lhe deu mais asas do que conhecer as palavras. Até hoje a seguimos, nos colocando à disposição do conhecimento para que possamos atingir um maior espaço, alçar vôos em direção de um horizonte sem ponderações, embora a colonização desse país tenha trazido a praga do machismo. Ainda hoje vivemos como Isabel, defendendo nossa integridade e sanidade, assim como Ana, que também defende seu ofício. Somos todas uma!
Mesmo diante do infortúnio do machismo e violações de nossos corpos, ainda cooperamos com a poesia. Assim era a personagem. Essa representatividade é tão genuína que, embora estejamos cansadas, ainda acreditamos no amor aos filhos, pelo bicho-torto homem, pela arte e tantos outros motivos que nos levam aos dias que passam. Isso é o que chamamos de vida.
Ana Barroso está belíssima no papel. A montagem é uma obra de arte que nos faz sonhar e esperar pelas cenas. Conforme vão acontecendo, vamos nos envolvendo com a ingenuidade da personagem, que é encantadora. Queremos ajudar Isabel a sair daquele lugar, presa sem um motivo justo!
Eu vou levar a história na alma. Não quero esquecer, porque preciso ter sempre a esperança de dias melhores, mesmo quando a injustiça dos homens me rodear!
Sinopse
Convento do Recolhimento da Conceição, Olinda, 1789. Isabel das Santas Virgens está enclausurada, acusada de loucura e rebeldia por lutar pela sua autonomia numa sociedade patriarcal colonial. Ela escreve uma carta à Rainha Dona Maria I, conhecida como a Rainha Louca, com quem se sente irmanada na opressão pelo mundo dos homens. Tida por muitos como também lunática, Isabel relata os destemperos e injustiças praticados pelos homens da Coroa – e por outros tantos – contra mulheres, escravizados e todos que se encontravam em situação de vulnerabilidade.
Isabel das Santas Virgens foi uma menina branca, filha de portugueses pobres recém-chegados ao Brasil para trabalhar num engenho de cana de açúcar no Recôncavo Baiano. Com a perda precoce dos pais, é criada entre a senzala e os aposentos da jovem sinhazinha Blandina, filha única do poderoso Senhor do Engenho. Com o passar dos anos, Blandina e Isabel, já crescidas, se apaixonam pelo mesmo homem, o aventureiro Diogo. A sinhazinha acaba se entregando ao “pecado da carne” e é punida, junto a Isabel, com a clausura num convento. Mais adiante, com a morte de Blandina e já em liberdade, Isabel assume uma identidade masculina para atuar em trabalhos que envolviam a escrita e não lhe eram permitidos, e acaba novamente presa. A personagem é uma heroína feminista: sem recursos ou proteção de quem quer que seja, enfrenta perigos e desafios munida de suas únicas ferramentas: a inteligência e a capacidade de ler e escrever, adquirida durante a convivência na casa grande.
Ficha Técnica
Da obra de Maria Valéria Rezende
Adaptação: Ana Barroso
Direção: Fernando Philbert
Elenco: Ana Barroso
Direção Musical: Marcelo Alonso Neves
Cenário: Natália Lana
Iluminação: Vilmar Olos
Figurino: Luciana Cardoso
Programação: Visual Raquel Alvarenga
Idealização e Realização: Ana Barroso / BB Produções Artísticas