Marcia, Marcia, Marcia...
É impossível começar a escrever sobre este espetáculo sem antes agradecer a essa mulher pelos seus feitos, a dedicação ao ser humano e à medicina. Que belo exemplo temos!
A infectologista Marcia Rachid, aos seus vinte e poucos anos, se formou na década de oitenta quando a Aids chegou ao Brasil, levando pessoas à morte.
Foi no hospital Grafrée e Guinle que ela começou a sua história, corajosamente. Essa unidade hospitalar está localizada na Tijuca e eu morava muito próximo de lá naquela época. Muitas pessoas deixaram de ir neste local para atendimento nas demais especializações, com receio do lugar, por ele estar recebendo os que contraíam o vírus HIV.
Depois, eu queria também agradecer à querida transformista Victoria por me recepcionar. Não só a mim, mas a todos que chegavam ao Teatro Sesi Firjan, com simpatia e beleza estonteante, entregando preservativos, ou seja, fazendo uma prestação de serviço à sociedade e nos levando a lembrar da proteção em nossas relações sexuais!
"Sentença de Vida" é um espetáculo idealizado por Gilberto Gawronski, que se torna ainda maior ao evidenciar a grandeza da autora do livro "Sentença de Morte", que traz um relato sobre sua vivência com pacientes da época.
Gilberto, ao ler a obra, convidou Patrícia Farias a elaborar o roteiro para o teatro. A aluna logo aceitou. Também, com um convite desse… Ele está a vontade no palco, que traz músicas do imenso Ney Matogrosso. O ator veste uma bota prateada e meia arrastão, parece estar se divertindo. No entanto, está contando histórias, impossíveis de ser esquecidas. Ele não precisa de críticas, é um gênio do teatro.
“A ideia é explorar o poder de ressignificação que o teatro tem. Queremos quebrar esse paradigma incapacitante com arte a partir da capacidade da Marcia de comover com suas histórias, mas também mostrar que o momento hoje é outro. A peça contamina o espectador de esperanças e de forças para transpor seus obstáculos. Os episódios narrados são histórias carregadas de sonhos, muito além de um olhar sobre uma epidemia e uma época marcada por medo e preconceito. Todas têm em comum o olhar sensível e humano de uma mulher que nos faz, sobretudo, acreditar na vida”, explica Gilberto, que também dirige a peça.
Uma das frases do texto também me impactou é quando um artista relata, em um audiovisual projetado no palco, que apoiar as causas da comunidade não te dá visibilidade, porque há preconceito exacerbado no seio da sociedade. Eu poderia não concordar, mas em um país onde mais se mata homossexuais, como discordar?
A iluminação é vibrante - hora boate e hora consultório. Vilmar Olos, que esteve nessa coluna faz pouquíssimo tempo, atua com maestria.
A peça é simples e descontraída, conta até mesmo com teatro de animação. A presença da querida drag queen Suzy Brasil no elenco desmonta a plateia em suas encenações através dos risos. Suzy ganhou o Prêmio de Humor do Fábio Porchat e, claro, que se é para fazer rir, a artista tem ferramenta artística de sobra para isso. Aliás, Suzy chega muito bem ao espetáculo, toda montada, fazendo um show para nós com a música "I Will Suvive", que tornou-se um hino para a comunidade LGBTQIA+.
Conheci Suzy em um espetáculo ótimo no Teatro Cândido Mendes, anos atrás. Ela me pegou pelo pé ao interpretar uma personagem que ia atrás de uma herança. Lembro que nós, na plateia, não conseguíamos parar de rir. Ela só dava um tempo para podermos recuperar o fôlego. Marcelo Souza, ou Suzy Brasil, é um artista que nasceu para o palco. Quem tem algum preconceito, apenas digo: não sabe o que está perdendo!
A peça emociona em alguns relatos. Mas não posso esquecer a informação que, do ambulatório da infectologista, as risadas eram constantes. Mas como, se era um momento tão aterrorizante? Poque não havia outra forma que não fosse a esperança e o acolhimento.
Falar de um tempo tão dolorido também nos faz lembrar que o vírus existe, mas que não mata se o acompanhamento for feito, através do SUS, que mais uma vez salva.
Clarisse Derzié Luz faz a performance da médica que acompanhava essas pessoas em suas vidas pessoais, em locais como boates, shows de transformistas e escolas de samba. Acompanhava seus pacientes, que eram negligenciados por suas famílias. Afinal, a igreja também contribuiu demais para este tipo de comportamento das pessoas. Aliás, foi cruel ao alimentar a ideia que a doença era culpa dos homossexuais, o tal "câncer gay" (era o que diziam à época). Isso não pode ser esquecido.
“O que se abate sobre o Brasil e o mundo nestes dias de crises e males insolúveis é resultado do pecado. O juízo de Deus se abate sobre aqueles que contra Ele se insurgem e que escarnecem dos seus mandamentos. A Aids é consequência da devassidão que enlameia o mundo”, disse o então deputado federal Orlando Pacheco, do finado PFL, no século passado.
“É uma deformação moral e espiritual reprovável, sob todos os pontos de vista cristãos”, falou outro parlamentar, o Pastor Eliel Rodrigues.
“A melhor maneira de evitar a Aids é a abstenção das relações sexuais até a idade adulta e a restrição do sexo a uma relação monogâmica fiel. No atual estado da medicina, muitos só salvarão a própria vida e a de parceiros se obedecerem a lei de Deus”, afirmou o Cardeal Dom Eugênio Sales.
Derzié convence a plateia. Afinal, no palco, ela está acompanhada de duas feras. Essa deve ter sido uma missão e tanto paracela...
A produção é de Wagner Uchôa, que está sempre presente nos teatros cariocas.
Concluindo: é um assunto que não pode ser esquecido!
Sinopse
Inspirado no livro homônimo de Marcia Rachid, espetáculo conta a história de uma médica que tem como missão de vida cuidar de quem vive com HIV
Ficha Técnica
Roteiro: Ryan Aguiar e Patrícia de Faria
Direção e idealização: Gilberto Gawronski
Elenco: Clarisse Derzié Luz, Gilberto Gawronski e Suzy Brasil
Figurino: Tiago Ribeiro
Iluminação: Vilmar Olos
Produção: Wagner Uchôa
Realização: GPS Produções Artísticas
Serviço
Data: Até 19 de dezembro
Onde: Teatro Firjan Sesi Centro — Avenida Graça Aranha, 1 — Centro, Rio de Janeiro
Quando: segundas e terças-feiras
Horário: 19h
Ingressos: R$ 15 a R$ 30