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"Lady Tempestade": monólogo sobre uma mulher guerreira invisibilizada

Olhar Teatral, Por Paty Lopes, Crítica Teatral

Em 08/01/2024 às 22:20:23

“Boa noite, bem-vindos! Vou desligar o celular para não atrapalhar vocês”. Assim Andrea Beltrão começa a peça, já que muitas vezes não adianta pedir que desliguem os aparelhos antes do espetáculo. Excelente postura da atriz…

Eu poderia dizer que a protagonista da noite seria Andrea Beltrão, mas não. Acredito que, tanto eu quanto a atriz e as demais mulheres desse projeto, entendemos que o nome da noite é Mercia Albuquerque, pernambucana, também conhecida como "Lady Tempestade". E não poderia ser diferente. Afinal, era essa mulher que, através do seu ofício, defendia e acolhia as mães que procuravam o paradeiro dos seus filhos durante a sangrenta e também pérfida Ditadura Militar no Brasil.

Começo o ano jogando pétalas de rosas sobre as atrizes cariocas e as demais mulheres do teatro da Cidade Maravilhosa. Dois mil e vinte e quatro! Foi dada a largada com grandes monólogos femininos e outros espetáculos com mulheres no protagonismo. Penso que o ano já chegou mostrando que nós não vamos recuar. Muito pelo contrário: vamos ocupar espaços, territórios que antes não nos pertenciam.

Quando uma equipe de mulheres potentes fala de outra mulher, claro que a chance do erro diminui ao extremo, pois somente nós podemos falar por nós. São inúmeras mulheres invisibilizadas, seja por tom de pele ou por um machismo estrutural, esse que parece não morrer nessa sociedade boçal.

Silvia Gomez, minha ex-professora de dramaturgia, desenhou o texto. É uma honra assistir às obras que nascem dela. Embora paulista, ela sempre está na ponte aérea pela grandeza que seus textos oferecem aos artistas reconhecidos. Faz pouco tempo que fui assistir "Dominguinhos" no Teatro Riachuelo, escrito e pesquisado por ela. Os textos de Silvia são densos e bem elaborados, mas também mergulhados em paixão. É preciso estar muito atento ao que vamos ouvir. Seus textos longos são defendidos por artistas realmente bons, o que é preciso para que o texto não caia na monotonia. É isso que sempre acontece no caso das obras dessa dramaturga. Dessa vez não foi diferente. Silvia estudou o diário da advogada Mércia. Claro que a escrita a sensibilizou, pois a obra transborda emoção. Ela pulsa e sangra, de alguma forma, em cada um de nós. Não vejo como uma pesquisa fácil. Pela primeira vez não encontrei o nome de Mércia no meu dicionário que pontua as mais importantes mulheres de mil quinhentos até os dias atuais

Yara Novaes assina a direção, que também conta com efeitos sonoros e visuais. Isso chama bastante a atenção. Há verdade na montagem, mesmo diante de efeitos contemporâneos. Yara é uma mulher do teatro, com desenvoltura sempre acima do esperado. E, pelo visto, mais uma vez mostra-se assertiva. É um espetáculo forte, que dispensa qualquer comentário que não seja uma palavra de enobrecimento. Yara é uma profissional que combina com palavras como frescor, juventude e dinamismo. Afirmo isso por conhecer algumas das montagens dela. É possível ver um Opala (carro) sumir na escuridão dentro do Teatro Poeira? Sim, é! É possível ver um jovem sendo levado à tortura e ouvi-lo? Sim, é! É sobre isso! É sobre uma Yara que sabe trazer elementos do teatro no palco com muito veracidade e modernismo. Ela tem esse dom.

“Yara de Novaes é atriz, diretora e professora de teatro. Recebeu vários prêmios por suas atuações e direções, entre eles, APCA, Prêmio Shell, Questão de Crítica, APTR, Aplauso Brasil e Fundacen. Em 2005, formou o grupo 3 de Teatro com Débora Falabella e Gabriel Paiva. Dirigiu diversos espetáculos, como "Tio Vania", de Anton Tchécov (com o Grupo Galpão); "Caminho para Meca", de Athol Fugard (com Cleyde Yaconis); além de "A serpente", de Nelson Rodrigues, “A Ira de Narciso”, de Sérgio Branco; “O Capote”, de Nicolai Gógol; e, mais recentemente, “Mãos Trêmulas”, de Victor Nóvoa, e “Teoria King Kong”, de Virginie Despentes”.

O cenário da Diná Salem está de bom tamanho. Nem mais e nem menos, com um excelente formato. Ele coopera magistralmente com a obra. No final do espetáculo a cenógrafa nos leva a uma avalanche de emoção. Não posso falar, mas é uma das cenas mais emocionantes do teatro, quando Mércia é desnudada, um momento que desvenda a trajetória dessa mulher durante este período como o texto diz/julga: sádico. Fico arrepiada ao lembrar…

Figurinos também não chamam a atenção, mas estão em total sintonia com a obra. Há equilíbrio em tudo.

Quanto à sonoplastia, uma salva de palmas seria pouco. São inúmeras entradas de som que são muito bem-vindas. É impressionante, faz um tempo que não vejo/ouço algo parecido. Supera tudo que esperamos de um espetáculo nesse quesito. Longe de julgar como over, é o contrário: muitíssimo harmonioso, trazendo vida ao espetáculo. A Ficha Técnica tem mulheres em maioria e Chico BF é o grande "bendito fruto" entre as mulheres, e com louvor.

Vamos falar da Andrea?

Podemos comparar Andrea a uma larva, que queima/incendeia com facilidade. Ela não precisa gritar, chama o texto para si e nos faz enxergar exatamente tudo que ela apresenta na escrita.

Não há uma maquiagem, um trabalho no cabelo, nada disso, apenas emoção de interpretar uma mulher como Mércia é mostrar a agonia dessa advogada diante do caos, diante da dor.

Andrea segue com um texto nada fácil de interpretar, mas fica firme na montagem, atuando com sotaque e com o corpo. É possível ver uma atriz que atua deitada, evidenciando Mércia, ao ouvir Beethoven. É como uma massa de pão que descansa e cresce. Vi a atriz crescendo e crescendo - ou seria evoluindo? - dentro das cenas.

O tom de voz é perfeito para o que era necessário. Ela se joga, vai ao chão, levanta, emociona-se nas suas leituras, entra em conflito e bate de frente mesmo com os cruéis ditadores, aqueles homens que torturavam e matavam. A atriz duela com a sua personagem durante todo tempo, o autoego da Andrea se manifesta durante a obra, mas retrocede. Há uma força estranha no ar: será a advogada dirigindo Andrea? Mércia é a nossa cereja do bolo.

A advogada iria ser médica, mas não gostava de corpos sem vida. Ela estava lá quando esses meninos eram encontrados. Seria isso ironia do destino?

Andrea construiu uma personagem contemporânea, exemplo de coragem para todas nós. A atriz mergulhou em uma protogonista da vida, que lutou e esteve ao lado de outras mulheres devassadas pela procura dos seus filhos, pela morte deles. Foram mais de 500 casos. Andrea não erra o texto e, se o faz, não percebemos. Ela anda no palco, evolui e se acalma, em uma sequência de frases repetidas no sofá. Nos faz entender que ela está a serviço de um dos melhores teatros vistos.

Que a atriz é excelente em performances já sabemos. Eu só não sabia sobre Mércia e agradeço de alma a essas três fazedoras de teatro. Em um mundo onde somos levadas a desgaste emocionais agressivos por um patriarcado abissal, somente sendo mulher para entender nossas histórias. Mas ao ouvir sobre a Lady Tempestade, nos levantamos mais uma vez e reerguemos nossas cabeças. Também entendemos porque hoje somos fortes, não adianta tentarem apagar, porque acima do mal há o bem. Um torturador foi evidenciado por meio de um livro, lembrado por outro monstro faz pouco tempo. Mas Mércia se levanta no silêncio e é reverberada por seus belos feitos. Nossas histórias serão trazidas cada vez mais com beleza.

Na primeira semana de janeiro, nós, mulheres do meio artístico, soubemos da morte da palhaça Julieta Hernández. Era uma cicloviajante e desapareceu durante sua passagem pela cidade de Presidente Figueiredo, no Norte do Brasil. Uma morte dolorida. Mais uma de nós, vítimas da estupidez vinda do que se denomina civilização.

Nos levantamos a favor da palhaça, pois Mércia nos ensinou a ter voz em meio às atrocidades cometidas por aí. Obrigada, meninas! Vamos seguir firmes utilizando do teatro para nos mantermos vivas e nos educarmos cada vez mais.

Sinopse

Numa madrugada estranha, uma mulher atende a um telefonema que mudará sua rotina: a voz de um homem desconhecido avisa que ela receberá pelo correio os manuscritos do diário da advogada pernambucana Mércia Albuquerque, defensora de presos políticos durante a ditadura civil-militar brasileira. Uma mulher, aparentemente comum, que salvou a vida de muita gente. Numa jornada de reflexão e encontro com histórias escondidas da nossa própria história, a dramaturgia explora o espaço de invenção entre o documento e a ficção e a colisão entre o passado e o presente para pensar o futuro.

Ficha Técnica e Serviço

Com Andréa Beltrão

Direção: Yara de Novaes

Dramaturgia: Silvia Gomez

Cenografia: Dina Salem Levy

Desenho de luz: Sarah Salgado e Ricardo Vívian

Figurinos: Marie Salles

Criação e operação de trilha sonora: Chico BF

Desenho de som: Arthur Ferreira

Assistente de direção: Murillo Basso

Assistente de cenografia: Alice Cruz

DURAÇÃO: 70 minutos

CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA: 12 anos

CAPACIDADE: 171 espectadores

HORÁRIO DE FUNCIONAMENTO:

TERÇA a SÁBADO 15h às 20h e

DOMINGO 15h às 19h

R. São João Batista, 104

Botafogo • Rio de Janeiro

+55 21 2537-8053

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