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"Palavras de Mulher": quatro damas à frente de seu tempo

Olhar Teatral, Por Paty Lopes, Crítica Teatral

Em 15/01/2024 às 13:27:38

Essa foi a primeira vez que fui ao teatro e saí de lá com a imensa vontade de ler, ler todas elas…

Como mulher tenho tanto a dizer, tanto a por para fora... Penso que sempre temos e vivemos em um momento que isso é possível, pois existiu uma época em que não podíamos. Mesmo que fosse artisticamente, éramos interrompidas.

Cassandra Rios, por exemplo, teve seus livros censurados; Virgínia Woolf teve pseudônimo masculino; o primeiro livro de sucesso da autora Coletti foi assinado pelo marido; e assim seguimos com uma lista extensa de repressão vivida por grandes autoras da história.

Mas isso ficou no passado, enterrado! Hoje escrevemos, atuamos e fazemos exatamente tudo que um dia tentaram nos impedir de fazer. Eu muito me orgulho dessas mulheres que abriram portas para todas nós.

Ao entrar no Teatro Cândido Mendes, deparei-me com folhas penduradas, folhas de livros envelhecidos, que me remeteram ao passado delas, dessas quatro autoras representadas no palco. Uma escada de madeira pequena, algo simples e que faz grande diferença para quatro atrizes em suas encenações. Se eu fosse tecer comentários sobre o desenho de luz, seria como o boneco Pinóquio, pois confesso que esse elemento passou sem que eu percebesse. Quanto à sonoplastia, essa também não causou efeito em mim. Peço desculpas aos profissionais envolvidos ou agradeço por terem a gentileza de deixarem em evidência o que precisava estar em primeiro plano.

Vou fazer como um dia fez Machado de Assis. Não sei se vocês já tiveram a oportunidade de ler uma crítica de um dos maiores escritores do Brasil, se não foi o melhor. Tenho minhas dúvidas, por que quem seria maior que o "Bruxo do Cosme Velho"? Mas, quanto às críticas tetrais de Machado, posso dizer que ele falava de cada personagem minuciosamente e sobre a história/dramaturgia. Meticulosamente, ele tecia seus textos falando dos artistas e de suas performances. De alguma forma, sinto vontade de fazer isso.

O espetáculo "Palavras de Mulher" é conduzido por quatro atrizes que representam personalidades femininas e icônicas da literatura brasileira: Eneida de Moares (Izabella Bicalho); Carmen Silva (Stella Maria Rodrigues); Clarice Lispector (Laura Proença); e Hilda Hilst (Helga Nemetik). Em uma “biblioteca no Paraíso“, conversam despreocupadamente, revisitando suas vidas e obras. O espetáculo visa difundir a literatura brasileira, estimular a leitura e destacar questões femininas presentes em nossa sociedade que, até hoje, vêm sendo pauta de muitos debates. O texto e a trilha sonora, que inclui compositores como Chiquinha Gonzaga, Déodat de Séverac, Claude Debussy, Gustav Mahler e Olivier Messiaen, são assinados pela escritora, dramaturga e poeta Rachel Gutiérrez, que tem oito livros publicados, entre os quais "Narcisismo e Poesia" e "O Feminismo é um Humanismo".

A peça nos traz uma roda de leitura ficcional dessas grandes autoras regada a whisky. Algo que não aconteceu, mas que acontece no palco. Assistimos a desdobramentos intrigantes, elegantes, com notas risíveis, que chegam deliciosamente para nós, apreciadores do bom teatro.

Enquanto elas leem seus poemas, suas escritas, conversam sobre a vida, suas histórias do passado, o que é um prazer de ouvir. Diante das belas performances, também de assistir.

Pela primeira vez vi o Cândido Mendes lotado. Não podia ser diferente diante da beleza que essa montagem nos apresenta.

Stella Maria Rodrigues, como Carmen da Silva, reina absoluta no palco. Sua experiência traduz e impacta sua atuação em qualquer espetáculo. Mas, como Carmem, ela arranca risos da plateia, que a aplaude antes mesmo do fim, algo raro nos dias atuais. O público presente está certo em fazê-lo: a atriz é uma operária do teatro, sempre nos palcos e atuando com primor. Como Carmem, pode-se dizer que não tem arranhões.

“Em seus escritos, Carmen da Silva contava a história de mulheres que, antes mesmo da existência de movimentos feministas organizados no Brasil contemporâneo, apresentavam os contrastes e desigualdades para os dois sexos. Os textos de Carmen da Silva proporcionaram novas formas de pensar e interpretar a condição feminina no Brasil.”

A atriz apresenta uma Carmen anfitriã das demais em sua casa, conta seus romances e lê seus contos. Stella desperta a plateia com a comicidade. Fala sobre a vida de Carmem. Delirantemente bem-vinda, ela é acolhida pela plateia. Não poderia ser diferente: ela se movimenta no palco com dinamismo e muito dona de si, ciente de seu papel e seu trabalho. Em uma indumentária preta, está elegante e bem de acordo com a autora. Basta buscar na internet. Cabe essa comparação para que possam confirmar o que estiu dizendo.

“Cada mulher pode e deve protagonizar sua vida no âmbito que escolheu…”, disse Carmem, em 1963. Assim foi Stella Rodrigues em seu papel, em seu ofício, na sua escolha. Bela atuação!

https://www.carmendasilva.com.br/galeria

Izabella Bicalho, como Eneida de Moraes, como ela preferia ser chamada, foi uma jornalista, escritora, militante política e pesquisadora brasileira. Sempre descrita em relatos de amigos e parentes como uma mulher forte, viva, corajosa, audaciosa e inteligente.

Eneida, embora paraense, era a cara do Rio. Escreveu o livro "História do Carnaval Carioca", onde implicou sublimemente com os que não gostavam de carnaval.

Era considerada subversiva por sempre estar envolvida em greves e manifestações contra o capitalismo e o governo de Getúlio Vargas. Em entrevista para o Museu da Imagem e do Som, Eneida sucintamente resumiu sua personalidade em 1967. “Eu sou rigorosamente uma mulher do povo. Nada que for fora do povo não me interessa. E também não nasci espectadora. Nasci para tomar parte no negócio. Então, todas as coisas do Brasil me interessam. Tudo, tudo me interessa”, declarou.

Durante um ano e cinco meses Eneida ficou presa na Casa de Detenção da Rua Frei Caneca, no Rio de Janeiro. Junto com ela, na sala 4, estavam outras militantes presas, como Maria Werneck de Castro e Olga Benário.

Izabella é debochada e divertida, tal como sua personagem. Uma graça de atuação. Ao ler mais sobre Eneida, mais enxerguei Eneida em Izabella.

Em uma das cenas, a música "Ô Abre Alas", canção escrita no bairro do Andaraí por Chiquinha Gonzaga, é entoada. Quando acaba, Izabella desmonta a plateia. Caímos na gargalhada quando ela pergunta: "acabou o baile?", meio que que já descompensada pelo álcool que elas bebiam. Muito Eneida!

“As belas jóias que tive, perdi em casa de penhores na etapa em que encontrei o meu caminho; justamente no momento do qual me orgulho: o da escolha de um futuro”

Essa também é Izabella: artista pronta a defender sua personagem. Eneida militou e Izabella ainda milita. Ambas pertencem a um grupo na sociedade que acredita em um país mais democrático. Estão unidas através do tempo.

Helga Nemetik como Hilda Hilst.

Confesso que, toda vez que ouvir sobre Hilda Hilst, Helga me virá à memória atropelando qualquer outra informação. Por que? Porque ambas são habilidosas quando se trata de arte, seja na arte cênica ou na arte da escrita.

Helga vem menos feminina, mas com uma beleza sobrenatural. Com uma calça, uma bota e uma camisa de mangas até os punhos, fala e gesticula com menos delicadeza, muito pouca feminilidade. Mas pudera: diante de uma personagem que escrevia sobre lesbianismo sem problema nenhum, como tratar a personagem como uma flor? Como desenhar essa inverdade?

O olhar de Helga é belo durante o espetáculo, tão poético quanto as poesias que ela lê da autora. Ela está PERFEITA em cena, um deslumbre. Os nossos olhos a procuram o tempo inteiro. Um desaguar cênico que segue em águas cristalinas de excelente temperatura, onde mergulhamos com os olhos abertos para enxergarmos mais beleza.

“Antes que o mundo se acabe

Antes que acabe em nós

Nosso desejo.”

E quem nunca viveu esse verso? Hilda Hist era apenas mais uma de nós, com verdade, com ousadia, dizendo absolutamente o que queríamos dizer outrora e hoje dizemos sem receios.

Laura Proença, como Clarice Lispector. Eu adoro assistir entrevistas com Clarice. Laura carrega aquele olhar da autora, refinamento na postura. Como Clarice, não larga o cigarro. O figurino de Wanderley Gomes foi assertivo em todas as personagens, mas o de Clarice chamou muito minha atenção, pois me levou a uma Clarice mais jovem e elegante, como ela era.

https://www.google.com/search?q=clarice+lispector&source=lmns&tbm=vid&bih=555&biw=1242&hl=pt-BR&sa=X&ved=2ahUKEwiuifv3v96DAxX1WLgEHcOvDjIQ0pQJKAN6BAgBEAg#fpstate=ive&vld=cid:6486fd25,vid:IJx58X2Zo9k,st:0

A atriz tem uma postura mais reservada entre as demais. Clarice era discreta. A atuação seguiu a mesma discrição da autora.

“Um jornalista me perguntou: por que escrever? Então eu lhe perguntei: por que você bebe água?”

Quatro mulheres em um palco que trouxeram quatro mulheres que se posicionaram a nosso favor, a favor do nosso futuro, nos fazendo entender um pouco do feminino. As atrizes trouxeram suas obras e as agruras do tempo delas.

A obra vale muito a pena ser vista. Digo mais: incentiva a leitura, o que considero muito importante.

Penso que essa obra merece um brinde por falar sobre elas, por trazê-las tão deliciosamente, sem serem monótonas. São divertidas, soltas, como eu penso que eram, embora as desenhassem de forma diferente.

Adorei!

Ficha Técnica:

Dramaturgia e Trilha Sonora: Rachel Gutierrez

Direção Executiva: Patricia Castro – Arte Cultura LTDA

Direção Artística: Sérgio Fonta

Elenco: Stella Maria Rodrigues como Carmen da Silva, Izabella Bicalho, como Eneida de Moraes, Helga Nemetik, como Hilda Hilst e Laura Proença, como Clarice Lispector.

Produção Executiva: Jenny Mezencio

Assistente de Direção: Marina Trindade

Figurinos: Wanderley Gomes

Projeto Cenográfico: Danielly Ramos

Aderecista: Regina Gaúcha

Construção de Escada Cenográfica: Skena Cenografia

Visagista: Fernando Ocazione

Maquiagem: Julita Machado

Iluminação: Gil Santos

Operador de Luz e Som: Cristiano Teodor

Contraregras: Alexandre de Castro e Luisinho Freitas

Acessibilidade: Patricia Saiago - Zenith Studios

Serviço:

Teatro Cândido Mendes

16 e 17/01 ( 3 ª e 4ª), às 20h

20 /01 (sab), às 18h

21/01 (dom), às 18h - Sessão com áudio descrição ao vivo.

Duração: 60 minutos

Lotação da sala: 102 lugares

Valor do ingresso R$ 35 (inteiro) R$ 17,50 (meia entrada)

Rua Joana Angelica 63 – Ipanema

Informações:

[email protected]

https://www.instagram.com/arteculturacomvc/

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