As Comissões de Investigação Preliminar, criadas por decreto publicado no dia 1º de janeiro, apontaram indícios de prática de ato de improbidade administrativa em quatro apurações relativas à última gestão: “QG da Propina”, Hospital de Campanha do Riocentro, contratação de equipamentos de saúde e desvios na função de agentes públicos (“Guardiões do Crivella”). As apurações fizeram parte do pacote de integridade lançado pelo prefeito Eduardo Paes, que dentre as diversas ações, determinou a criação de comissões de investigação preliminar, coordenadas pela Secretaria de Governo e Integridade Pública (Segovi) e pela Controladoria-Geral do Município (CGM).
As conclusões foram encaminhadas para os órgãos de controle para que sejam tomadas as medidas cabíveis. Nas três que se configuram como possíveis casos de improbidade administrativa, as apurações passarão por auditoria da CGM, ao mesmo tempo em que também foram enviados para o Tribunal de Contas do Município (TCM) e para o Ministério Público Estadual (MPRJ). Já no caso “Guardiões do Crivella”, o encaminhamento da apuração foi para a CGM e para o MPRJ. Conforme parecer da Procuradoria-Geral do Município (PGM), deve ser mantida a confidencialidade dos nomes das pessoas envolvidas, de forma a preservar as investigações e possibilitar seu aprofundamento sem embaraços.
– A Investigação Preliminar é um instrumento importante, previsto por decreto municipal desde 2014. A partir dele, são acionados os órgãos de controle, tanto internos, como a CGM, quanto externos, como o TCM e o Ministério Público. A eles, caberá uma apuração mais detalhada e eventuais punições – comentou o secretário de Governo e Integridade Pública, Marcelo Calero.
Hospital de Campanha do Riocentro
O alto custo foi o primeiro ponto que chamou atenção nas apurações relacionadas ao Hospital de Campanha. O valor do Hospital de Campanha do Riocentro ficou na ordem de R$ 370 milhões, de acordo com os dados apurados à época. Isso em uma estrutura provisória, em que nem sequer foi ocupado 1/4 dos 500 leitos que seriam disponibilizados. A comissão buscou responder o porquê e em que seriam gastos R$ 370 milhões.
A título de comparação, o total de investimentos estruturais e de funcionamento da unidade chegou a ser quase quatro vezes maior se comparado com quatro grandes hospitais da rede municipal do Rio. Por exemplo, o valor total anual gasto com a operação do Hospital Municipal Lourenço Jorge é de R$ 101 milhões e o do Hospital Municipal Miguel Couto é de R$ 110 milhões.
Não bastassem os indícios de superfaturamento ou mau uso de recursos públicos, não foi encontrado qualquer estudo prévio que apontasse a real necessidade da construção e da efetividade no tratamento para pacientes de Covid-19. Pelo contrário: o posicionamento da área técnica era a favor da criação de, ao menos, mil leitos de combate à doença, dentro da rede preexistente da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), por meio da reativação de leitos ociosos.
Dos 500 leitos disponibilizados pelo equipamento, a ocupação média foi de apenas 22%, chegando a um pico de 165 internações, deixando claro que a opção por sua construção não foi apenas equivocada, mas, suspeita-se, buscou atender a interesses bastante diversos daqueles esperados na saúde pública. Desde a construção, nunca houve recursos humanos suficientes para a abertura de todos os leitos previstos.
A portaria do Ministério da Saúde no GM/MS no 1.514, de 15 de julho de 2020, recomendando aos gestores o reforço das unidades já existentes no SUS, e, com isso, repelindo construção de estruturas provisórias, também atesta a opção criminosa pelo Hospital de Campanha.
Compra de equipamentos e insumos de saúde
Nas investigações sobre a compra de equipamento e insumos de saúde, o alto valor desperdiçado, sem necessidade comprovada, pela última gestão da Prefeitura do Rio (US$ 15.125.082,11 cerca de R$ 85.918.028,92) foi o que mais uma vez chamou a atenção dos técnicos.
Em análise preliminar, foi verificado que, estranhamente, o formato inicialmente designado (pregão eletrônico) foi abandonado, e a licitação ocorreu na modalidade presencial. Tal fato, desprovido de justificativa plausível e somado à existência de cláusulas restritivas de competitividade, pode configurar, além de dano ao erário e enriquecimento ilícito, crimes contra administração pública.
As linhas de investigação implementadas definiram dois eixos de apuração: o primeiro buscou descobrir os reais interesses na aquisição dos equipamentos, já que não havia qualquer demanda das áreas técnicas da Secretaria de Saúde; e o segundo avaliou as possibilidades de fraudes nos processos de compra.
No primeiro eixo, avançou-se na análise das aquisições de equipamentos como raio-X, tomógrafos, ecocardiogramas, aparelhos de esterilização, aparelhos de anestesia, máquinas de diálise, ventiladores mecânicos e mesas cirúrgicas. A maior parte deles nunca chegou aos hospitais, pois demandavam adequações estruturais de grande porte, jamais previstas. No caso dos aparelhos de diálise, o fornecimento dessas máquinas era e ainda é feito de forma terceirizada, não cabendo uma compra desse porte por parte do município.
Grande parte dos equipamentos permanece encaixotada desde a sua compra, em março de 2020, em depósitos ou nas unidades de saúde, sem que haja qualquer viabilidade para sua instalação. Os custos de armazenagem chegam a R$ 4.763.570.
A investigação não encontrou um único processo no qual houvesse demanda das unidades de saúde que justificasse a compra desses materiais. A decisão de renovar totalmente os parques tecnológicos dos hospitais do município partiu diretamente da cúpula da última gestão da SMS. Além disso, os próprios processos de compra contêm vários indícios de fraude, como pareceres sem assinatura e modificações de páginas dos processos.
QG da Propina
O chamado “QG da Propina” funcionava dentro da Prefeitura, mais especificamente na Cidade das Artes. Neste local, algumas pessoas, sem qualquer vínculo formal com a Prefeitura, exploravam a influência que detinham, despachando e tratando de assuntos oficiais em benefício do grupo que compunham, por meio de licitações, contratos e priorização de pagamentos.
O avançar das investigações, tanto pelas provas já colhidas e divulgadas pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro como também pelos relatos apontados no relatório preliminar, oferecem conteúdo que corroboram com a tese de que o grupo, que ocupou posições de comando da administração municipal na última gestão, além de formar uma complexa organização pode ter praticado corrupção passiva, peculato, fraudes a licitação, lavagem de dinheiro e diversos outros crimes contra administração pública. O conteúdo será objeto de aprofundamento.
A Comissão também verificou indícios de direcionamento de diversas licitações, em troca de recursos não contabilizados para campanhas políticas, e prática de corrupção por meio de pagamento de vantagens ilícitas.
Guardiões do Crivella
A Comissão investigou o emprego de profissionais comissionados do município para defender a última gestão na porta de hospitais, enquanto eram realizadas reportagens pela imprensa, em especial pelas equipes da TV Globo.
Foi constatado que houve violação do direito constitucional da livre manifestação, cerceamento à liberdade de imprensa e falta de transparência a respeito do exercício do cargo público para o qual estavam destinados. Os nomes do ex-prefeito e de seis outros servidores nomeados foram investigados e encaminhados à CGM e ao MPRJ.
Foto: Reprodução TV Globo
A gravidade das condutas foi motivo para o Ministério Público instaurar Inquérito Civil para apurar a utilização da estrutura administrativa do município, em prol da defesa pessoal da imagem do ex-prefeito. O fato configura desvio de função, dano ao erário, violação aos princípios da administração pública, além de grave atentado à imprensa, que viu seu direito de informar e sua liberdade de manifestação, flagrantemente atingidos.