A prisão dos suspeitos da morte da vereadora Marielle Franco e do seu motorista Anderson Gomes, reforçou a importância de uma discussão essencial para a sociedade carioca: o poder e a existência de inúmeras áreas dominadas não só pelo tráfico, mas também pelas milícias. Isso porque, os dois principais suspeitos da execução, Roni Lessa e Élcio Vieira, estão envolvidos com o modelo de crime organizado que se estabeleceu em diversas regiões do Rio de Janeiro.
Em seguida, na última sexta-feira (12), mais um episódio envolvendo as transações milicianas voltaram a ganhar destaque nos noticiários. Dessa vez, dois prédios desabaram na comunidade da Muzema, Zona Oeste carioca. Há diversos indícios que apontam o envolvimento das milícias com a construção e venda ilegal dos imóveis em área de proteção ambiental.
Em 2008, quando o deputado Marcelo Freixo esteve à frente da CPI que investigou a presença destas organizações paramilitares no município, foi criada uma força-tarefa que recebeu um total de 1.162 denúncias e mais 44 relatos anônimos sobre os locais dominados.
Na época, de acordo com o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), ficou comprovado que elas estavam presentes em inúmeras comunidades cariocas. Entre elas, a Carobinha, Barbante, Villar Carioca, Taquara, Santa Cruz, Gardênia Azul, Belford Roxo, Nossa Senhora da Glória em Macaé, Praça da Bandeira e Campo Grande. Sempre com a participação de integrantes civis e militares. Além de contar com a colaboração de órgãos públicos de segurança, o relatório ainda teve a participação de diversos acadêmicos.
Fatos
Vale ressaltar que foi no ano de 2004 que as milícias passaram a fazer parte do cotidiano da segurança pública do Rio de Janeiro. A partir de então, alguns agentes do estado começaram a dominar regiões e comunidades por meio de ações violentas e “leis” criadas para se autobeneficiarem. Em dezembro de 2006, segundo a CPI, atentados promovidos por narcotraficantes tiveram como principal motivação a propagação das milícias em territórios estaduais.
Em 2007, Jorge da Silva, líder comunitário da Kelson´s, pagou com a própria vida por ter feito uma denúncia contra os grupos. Em maio do ano seguinte, jornalistas do veículo “O dia”, que produziam uma reportagem sobre o tema, foram torturados. O caso teve uma grande repercussão nacional e chamou ainda mais a atenção das autoridades.
Os estudos da comissão também identificaram conceitos importantes relacionados às organizações criminosas. No geral, com as análises de especialistas e acadêmicos do universo social, elas foram caracterizadas por oferecerem proteção paga contra os próprios ameaçadores, além da geração de renda individual a partir da ideia de um mito libertador do tráfico, mas que na verdade nunca libertou ninguém.
Nestas pesquisas, as milícias foram comparadas à expressão “Polícia Mineira” que atuava mais restritamente. No caso, o grupo usado para a comparação, agia diretamente no extermínio de criminosos oferecendo segurança para os comerciantes e a população de bairros pobres e favelas.
Contudo, diferentemente daquilo que as originou, as milícias estão ligadas a uma relação de atividades ilegais como a venda de botijões de gás, o controle dos transportes alternativos e a participação de líderes do movimento transgressor no Poder Legislativo do estado.
Neste contexto, é importante destacar que o descaso do Estado em relação às garantias dos direitos da população carente, principalmente, no que diz respeito à segurança pública, favoreceu e incentivou o desenvolvimento de um modelo de segurança privada que passou a atuar seguindo suas próprias diretrizes e agindo de diferentes maneiras em bairros da cidade..
Desse modo, a população com maior poder aquisitivo se resguarda em seus condomínios de luxo e são protegidas por uma segurança contratada legalmente. Já nos locais mais carentes, os moradores são praticamente obrigados a aderirem a um sistema de “segurança” proporcionado pelas milícias, mesmo que daí derive uma imposição que precisa ser paga para sobreviver e garantir uma falsa sensação de paz. Não há liberdade, o que há interesse individual em lucrar e gerar uma renda paralela, capaz de manter tais negócios vivos e cada vez mais poderosos.
Para alguns especialistas que fizeram parte da elaboração do relatório final da CPI das milícias, uma das prováveis causas do surgimento deste movimento foi a possibilidade da segurança informal e ilegal reforçada por alguns membros do setor de segurança pública que, buscando um atividade extra para aumentar seus baixos salários, contribuem para a degradação do que deveria ser oferecido gratuitamente pelo estado.
Ignácio Cano, professor e membro do LAV-UERJ, foi um dos acadêmicos que contribuiu para a elaboração do relatório final. De acordo com ele, nos últimos anos, houve uma expansão dos territórios dominados.
“Desde o estudo realizado pela CPI, não houve nenhuma ação efetiva do estado em relação a retomada do controle territorial. Diferentemente, do combate ao tráfico. As UPP´s foram criadas justamente para isso. Quando o estado agiu contra às milícias, ele investigou e prendeu, o que é extremamente importante. Contudo, não houve tentativa de recuperar os territórios dominados. Afinal, se não uma fiscalização por meio de um policiamento ostensivo, fatalmente, esses grupos continuam operando ou novas facções entram para substituí-los”, explicou o professor.
Ele ainda afirmou que outro erro no combate aos milicianos se configurou na ausência da regulamentação de serviços onde eles lucram como nos casos do transporte público alternativo, no uso da TV a cabo (gato net) e venda de botijões de gás, por exemplo. Para Ignácio, o lado econômico foi esquecido, bem como, a questão do domínio de territórios.
Reféns do medo
Na última sexta-feira (12), o Rio de Janeiro assistiu a mais uma tragédia. Agora, dois prédios desmoronaram na região da Muzema, Zona Oeste carioca. Os edifícios foram construídos em local de proteção ambiental de maneira irregular. Os empreendimentos eram responsabilidade da milícia local. Até o momento, 16 pessoas morreram e 8 continuam desaparecidas.
A exploração do mercado imobiliário passou a ser uma nova opção de transações comerciais dos grupos milicianos em algumas localidades do Rio de Janeiro. Na região da Muzema, a expansão das construções desafiou o poder público e os órgãos responsáveis. Apesar das inúmeras irregularidades, o crescimento do negócio não se intimidou.
De acordo com a Procuradoria-Geral do Município, existem quatro processos de demolição de prédios na região da Muzema. Porém, outras decisões judiciais impediram o cumprimento das ordens. Em dezembro de 2018, uma operação realizada pelo Ministério Público e pela Defesa Civil acabou prendendo 13 pessoas acusadas de grilagem de terras e construção ilegal de imóveis. Nesta ação, o Major da PM Ronald Paulo Alves Pereira foi preso e acusado de ser o chefe da organização.
Os apartamentos são vendidos em sites imobiliários. Os preços variam entre R$ 35 e R$ 70 mil. Geralmente, segundo a denúncia de alguns compradores, as documentações exigidas não incluem escritura ou qualquer outro tipo de documento. Além disso, os moradores não pagam pelos serviços públicos, o que acaba sendo um atrativo para a população com menor poder aquisitivo.
No mapa a seguir, reproduzimos um mapa ilustrativo produzido pelo coletivo Pista News. Nele, é possível identificar, na cor azul, algumas das principais áreas dominadas pelas milícias do Rio: