O evento Saúde, Favela e Direitos Humanos, promovido no último dia 18, no MACquinho, em Niterói, divulgou dados preliminares de um estudo feito por pesquisadores da PUC-Rio e da UFRJ que traça um diagnóstico dos projetos que integram a iniciativa interinstitucional Plano Integrado de Saúde nas Favelas do Rio de Janeiro, da Fiocruz. A pesquisa identificou que metade dos projetos (50%) tem atuação restrita a uma favela, enquanto a outra parte promove atividades em pelo menos mais de um território.
Os impactos das ações são abrangentes e incidem diretamente entre membros de toda uma família, independente da configuração, e no contexto social da comunidade. No entanto, 13,6% das ações refletem exclusivamente na saúde de mulheres e 9,1% na de crianças, adolescentes e jovens. Família e comunidade representam 52,3% do total analisado. As ações do Plano já impactaram 500 mil pessoas.
O levantamento tem o objetivo de mapear as iniciativas do Plano, que busca enfrentar os desafios de saúde pública nas comunidades fluminenses, especialmente no contexto pós-pandemia de Covid-19. Para isso, estão sendo avaliados o alcance dos projetos apoiados pelos editais do Plano promovidos pela Fiocruz, que apoiou nos últimos três anos a construção de cozinhas comunitárias, consultórios psicoterapêuticos para mulheres e cursos de formação de jovens comunicadores, dentre outras ações.
Os projetos foram implementados por diferentes tipos de organizações, desde associações comunitárias até instituições não governamentais e entidades de saúde. A distribuição territorial incluiu uma ampla variedade de favelas e territórios, considerando fatores como densidade populacional, infraestrutura e acessibilidade. Isso garantiu uma abordagem inclusiva e direcionada. Ao todo, 70,5% das organizações que executaram recursos entre R$ 50 mil e R$ 500 mil são Organizações Não Governamentais (ONGs), outros 13,6% são de coletivos e 10,2% associações locais. Movimentos sociais representam 5,7% do conjunto de organizações.
“O Plano nasceu da necessidade de uma resposta emergencial para a pandemia de Covid-19 e, no pós-pandemia, teve a ampliação de sua agenda para a saúde integral, atacando diversas necessidades que impactam diretamente na vida de quem vive nas favelas do Rio de Janeiro. A resposta inicial foi dada pelos observatórios e demais organizações que atuam localmente em pesquisas e no levantamento de informações. O que estamos fazendo é colaborar com essas observações sociais sob os coletivos e associações que foram os agentes que apontaram os caminhos das políticas públicas”, explica o professor Pedro Cláudio Cunca Bocayuva, do Programa de Pós-Graduação de Políticas Públicas em Direitos Humanos (PPDH) do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos Suely Souza de Almeida da UFRJ e coordenador do Laboratório do Direito Humano à Cidade da UFRJ.
O Plano foi criado em 2020 e é pioneiro no país com foco em saúde integral nas favelas onde vive a população mais vulnerável. O evento reuniu representantes dos 146 projetos que integram o Plano, lideranças comunitárias de favelas de 33 municípios do estado, pesquisadores e autoridades.
Saúde integral
Para obter uma análise representativa do universo de 90 projetos aprovados no primeiro edital, os pesquisadores selecionaram 18 iniciativas para um estudo aprofundado. Deste grupo, seis possuem relação direta com a escola local e envolvem atividades que conectam saúde e educação, promovendo ambiente saudável para estudantes e profissionais da área. Outros quatro projetos promovem a Saúde mental por meio de suporte psicológico e no bem-estar emocional, essenciais no contexto pós-pandemia. A comunicação e informação são áreas de atuação de quatro projetos que realizam a disseminação de informações confiáveis sobre saúde, combatendo desinformações. Quatro projetos promovem conscientização e aprendizado em diversas áreas de saúde pública através de ações educativas.
Professora do Núcleo Interdisciplinar para o Desenvolvimento Social (NIDES) da UFRJ, Luciana Correa do Lago destaca a mudança de visão sobre a saúde nas favelas provocada pela crise sanitária ocasionada pela Covid-19. Para a pesquisadora, a pandemia evidenciou problemas sistêmicos nestes territórios, consequências da desnutrição. “A pandemia levou as organizações sociais a incorporarem o tema da saúde em suas agendas, e a segurança alimentar foi um eixo de atuação central, uma emergência estabelecida. Vimos que o Plano Integrado de Saúde nas Favelas foi um reforço para essas ações no período emergencial, mas estimulou ainda ações nesse campo voltadas para a fome oculta, a desnutrição, a má qualidade dos alimentos. Ou ponto a ser destacado é a capacidade das ações nesse campo da segurança alimentar, de mobilizar os jovens e as mulheres das comunidades e de acionar a formação de redes”, avalia Lago.
O coordenador-executivo do Plano Integrado de Saúde nas Favelas do Rio de Janeiro, Richarlls Martins, diz que o estudo preliminar reflete um esforço conjunto para compreender a eficiência e o impacto das iniciativas. Os resultados obtidos até o momento segundo ele fornecem subsídios valiosos para o aprimoramento e a expansão das políticas públicas de saúde voltadas às favelas, ao articular organizações sociais, pesquisadores e poder público, numa estratégica conjunta para promover equidade em saúde e melhoria das condições de vida nestes territórios.
“A construção deste diagnóstico por pesquisadoras e pesquisadores externos à Fiocruz é uma maneira de aprofundar um olhar crítico sobre a constituição dessa estratégia interinstitucional que tem como objetivo ampliar o direito humano à saúde nas favelas. A apresentação dos resultados preliminares demonstra o quanto esse trabalho articulado produziu impactos diretamente no fortalecimento do associativismo comunitário e da participação social na saúde, que é um dos objetivos primários do Plano Integrado de Saúde nas Favelas. É possível perceber pela apresentação preliminar que as ações extrapolaram a questão do enfrentamento emergencial à pandemia da Covid-19 e induziram a construção de redes. Isso é um indicador muito interessante para ser aprofundado em futuras pesquisas”, aponta Martins.
Nutrição e agroecologia
O Centro de Atenção Comunitária (Cedac) atua no apoio à segurança alimentar, enfrentamento à fome e pobreza, através da distribuição de cestas básicas, de refeições e da organização de quintais produtivos e hortas comunitárias no Morro do Turano, no Rio de Janeiro e em favelas de Duque de Caxias. A organização foi aprovada no primeiro edital promovido no âmbito do Plano e, segundo a coordenadora Rosa Maria Cordeiro Alvarenga, a pesquisa tem conseguido acompanhar as adaptações da atuação do Cedac durante a pandemia e depois da crise sanitária.
“A gente consegue perceber como esses dois pontos, a segurança alimentar e nutricional e a agroecologia, foram se transformando na execução do nosso projeto e dos outros projetos também. A partir da troca de experiências, dos encontros que a coordenação do plano possibilitou desde o início, essa pauta foi se articulando em rede. Essa troca de experiências foi fundamental”, conta Alvarenga. “Nós somos inúmeras organizações, movimentos, grupos de diferentes áreas de atuação, que sem perder o que é próprio de cada organização, de cada grupo, de cada coletivo, vem descobrindo novas formas de dizer que segurança alimentar é saúde. E que a agroecologia promove saúde, assim como a comunicação e a cultura. A avaliação dos pesquisadores foi nos ajudando a ter foco e a gente foi se vendo, foi se encontrando dentro do que foi colocado”, considera.
Além do combate a vulnerabilidade alimentar, a formação de redes a partir da constituição do Plano Integrado de Saúde nas Favelas contribuiu para a mudança de visão em relação a qualidade do que é consumido pela população destes territórios, de acordo com o Márcio Mattos de Mendonça, coordenador do programa de agricultura urbana da AS-PTA, que atua com ações de enfrentamento à fome e pobreza na Serra da Misericórdia, na Zona Norte do Rio. Segundo ele, após a pandemia houve maior acesso da população das favelas a alimentos orgânicos e de qualidade nutricional elevada.
“O fortalecimento de iniciativas de agroecologia que trabalham no campo da soberania e segurança alimentar é visível, mostrando que dentro das favelas existem experiências de produção de alimentos, de hortas. Durante o período da pandemia, no período mais agudo, muitas iniciativas apoiadas pelo Plano promoveu a distribuição de produtos agroecológicos, sem contaminantes de agrotóxicos. Foram alimentos produzidos diretamente dos agricultores e distribuídos nas favelas, mostrando que é possível abastecer as favelas com alimentos saudáveis. Antes, a gente via muito limitadamente as iniciativas de abastecimento nas favelas. Os produtos orgânicos agroecológicos muitas vezes eram comercializados, vendidos em feiras, mas não chegavam nas favelas. A pandemia fez com que isso começasse a mudar”, analisa Mendonça.