Olá, Renata!
Esse texto deveria ser uma crítica à sua performance, mas confesso que, mediante ao que assisti, acho que também posso fazer algo diferente. Algo do tipo de mulher para mulher!
Primeiro, eu gostaria de falar do meu olhar sobre o fazer teatral. Não julgo tudo arte, tenho que ter um senso crítico, ao menos para mim mesma. A meu ver, quando o educativo se apropria dos palcos, isso já é o suficiente para que esse olhar seja mais atento, porque o que nos falta é educação. Educação com esmero, com a pretensão de se fazer uma nação desenvolvida, e isso você o fez, no palco do Sesi Firjan, recheada de educação e simpatia, sem vulgaridade, embora seminua, no meio da SUA plateia, daqueles que foram para te assistir. Afinal, estávamos diante de uma transpóloga - termo que desconhecia, eu não tenho que saber tudo, mas quero aprender o máximo que puder na minha caminhada.
Posso afirmar que aprendi com você, aprendi como falar sobre uma travesti, a importância dos artigos, que embora sejam tão curtos podem machucar infindavelmente uma pessoa.
Aprendi o que é passibilidade, até então também nunca tinha ouvido falar dela.
O termo passabilidade (em inglês, “passing”) significa a possibilidade de uma pessoa ser lida socialmente como membro de um grupo identitário diferente do seu pertencimento originário.
E quanto a isso, Renata, claro que você porta da beleza feminina. Seus cuidados e sua busca parecem ter dado certo. No entanto, eu vi algo maior: uma mulher doce, delicada, brincalhona, que me interessou bem mais que sua aparência. O ser humano que você comporta nesse corpo, esse nos inunda, dona de uma sutileza ímpar, que não economiza.
Mas essa carta aberta não está sendo escrita para te levar elogios, embora os mereça, mas sim para falar sobre o que você nos tem trazido.
Muito interessante quando você fala da sua concepção, no útero da sua mãe, menino ou menina, carrinhos ou bonecas, rosa ou azul, tudo isso para que as pessoas possam entender um pouco sobre os transgêneros. Essa não aceitação do corpo, melhor que isso, a não identificação com ele. Certamente você deve ter lido o livro "Longe da Árvore", de Andrew Solomon. Inclusive, esta obra foi considerada uma das cem mais importantes pelo jornal The Time. No capítulo que aborda o tema, fala-se sobre as lutas dos gays e lésbicas, que se juntam aos trans, para haver mais respaldo, através do quantitativo. No entanto, as nomenclaturas causam muita confusão, são muitos termos, e isso de alguma forma não nos norteiam. Eu concordo com esse parágrafo, assim como muitos outros. Desistimos nesse caminho do entendimento, porque a cada dia é uma sigla nova, e causam desconforto para nós, com receio de errar ou não respeitar. Penso que isso nos afasta um pouco, essa é minha opinião. Penso que falta mais aproximação para podermos entender na íntegra e é isso que vc nos oportuniza.
Tive a oportunidade de ver "Brenda Lee e o Palácio das Princesas", da qual você inteligentemente menciona no seu trabalho. Na época assisti online e teci uma crítica sobre a obra, quando eu jamais imaginaria que essa fosse indicada ao Prêmio Shell de Teatro. Mais que isso: levar o troféu!
Posso fazer uma ponte das palavras do artista Denzel Washington, quando fala sobre "A Lista de Schindler", que muitos poderiam ter feito. No entanto, Spielberg o fez e deu certo, porque isso é cultura. O que ele trouxe, por sua familiaridade judaica, é o mesmo que Brenda Lee e você fazem, por nasceram de vocês, de suas histórias.
Confesso, Renata, que até então eu não conhecia a história da Brenda. Hoje tenho muito orgulho dela, por ter sido a mulher que foi: afetuosa, uma mãe para aqueles que necessitavam dela, em um momento da sociedade tão obscuro. Inacreditavelmente, quando a religião tinha que ter acolhido essas pessoas, apontou os dedos desgraçadamente. Foi o que aprendi no curso "Como Eliminar Monstros", com Dadado e Ronaldo Serruya. Assustador!
E falar sobre isso foi ótimo! A verdade é que todas as histórias do passado das travestis foram um pesadelo, algo desumano demais. Parece que isso cresceu nos últimos anos.
Renata, eu gostaria de entender porque as pessoas riem, olham de maneira estranha, fazem comentários abusivos, piadas intencionalmente cruéis para travestis e outros, quando essas mesmas pessoas poderiam estar ocupando o tempo com construções para uma sociedade melhor. E isso, essa transformação social necessária, você - com seu jeito despojado - o faz, sem que implique ou case com a apelação.
Querida, essa onda de transfobia, racismo, tudo isso me leva a Freud. Impossível não levar. Uma sociedade que parece estar hipnotizada por líderes espirituais ou políticos.
“O contágio é um fenômeno fácil de constatar, mas inexplicável que é preciso relacionar aos fenômenos de ordem hipnótica que adiante estudaremos. Numa massa, todo sentimento, todo ato é contagioso, e isso a ponto de o indivíduo sacrificar facilmente o seu interesse pessoal ao interesse coletivo. Eis uma aptidão contrária à sua natureza: de que o homem só se torna capaz enquanto parte de uma massa” (Freud - Psicologia das Massas - 1920-1923)
Tudo que você leva ao público tem importância para aqueles que almejam uma sociedade sã. Mostrar o corpo é um ato de coragem e que, no teatro, fica a serviço da sociedade, daqueles curiosos que parecem se importar mais com o que se vê e não com que sente, infelizmente.
Posso afirmar que, quando dissestes que o seu "eu" conflitava com o seu "eu atriz", e a nudez ainda lhe causava uma certa aflição, de mim emanou a cordialidade e o respeito. Assim, o seu bem-estar era o que realmente me importava naquele momento, não levantei minhas mãos. O que vi de uma travesti foi o bastante para qualificá-la como uma mulher agradabilíssima. Eu não precisava mais de você, além da sua história, sua dramaturgia e horas de ensaios. O seu "eu" já se fez solar no momento que tanto aprendi.
Mas quando você teatralizou o seu nu, foi exatamente ali que vi o teatro, o protagonismo e o antagonismo de si mesma.
Mais que isso: quando o nu chegou, vi uma das esferas do teatro agindo a favor do espetáculo. A iluminação elegante de Wagner Antonio foi esplendorosa. Posso dizer que, desde o início do espetáculo, ele chama nossa atenção. Esse trabalho foi bem concebido por ele. Expôs, sem o perigo dessa linha tênue entre o nu e a vulgaridade. Ele foi essencial e te conduziu com um olhar refinado. Mais que isso, belíssimo!
Renata, de mulher para mulher mais uma vez: siga o seu caminho com a paz que você merece ter, que também nos traga mensagens de vitória através do seu ofício. Saiba, que atrás da minha poltrona, um pai acompanhava seu filho. Ele, o rapaz, era casado, hétero. O pai também dizia estar confuso com tantos nomes, e o filho respondeu: "pai, hoje o senhor terá uma oportunidade para entender melhor". Se entendeu, não sei, mas te aplaudiu de pé, com gritos de "bravo"! Deveria ser "brava!", mas vamos por partes, né?
Eis aí a função do teatro, assim penso…
“Como se pode perceber, a função dele, do teatro, de maneira ampla, é a de causar reflexão e purificar, por meio de catarse, o espírito do homem. Sua importância se reafirma pelo aprofundamento do ser reflexivo e social.” (Portal Catalão)
Que o seu trabalho Renata, que é perceptivelmente abraçado pelo amor, chegue a mais espaços. Que em suas vitórias, taças sejam levantadas por todas as que vieram antes de você, pelas que se foram de maneira brutal, pelas que lutaram visceralmente por liberdade e por suas próprias sobrevivências.
SINOPSE:
“Hoje eu resolvi me vestir com a minha própria pele. O meu corpo travesti”. Renata “se veste” com seu próprio corpo para narrar a historicidade da sua corporeidade. Renata se alimenta da sua “transcestralidade”. Come-a, digere-a. Uma transpofagia. O Corpo Travesti como um experimento, uma cobaia. Um manifesto de um Corpo Travesti. Letreiro pisca TRAVESTI. TRAVESTI. TRAVESTI.
FICHA TÉCNICA:
Dramaturgia e Atuação: Renata Carvalho
Direção: Luiz Fernando Marques (Lubi)
Luz: Wagner Antônio
Video Art: Cecília Lucchesi
Operação e adaptação de luz: Juliana Augusta
Produção: Corpo Rastreado
Co-produção: Risco Festival, MITsp e Corpo Rastreado.
Difusão: Corpo a Fora e FarOFFa
SERVIÇO:
“MANIFESTO TRANSPOFÁGICO”
Temporada: 17 de abril a 30 de maio*
*Não haverá espetáculo nos dias 1º e 02/05
Dias da semana: Segundas e terças-feiras, às 19h
Ingressos: R$ 30 (inteira) / R$ 15 (meia-entrada)
Local: Teatro Firjan SESI
Endereço: Av. Graça Aranha, nº 1 – Centro
Informações: (21) 2563-4163
Lotação: 338 lugares
Classificação Indicativa: 16 anos