O teatro sempre será um entretenimento ligado ao cotidiano da sociedade. Isso, aqui no Brasil, devemos muito ao dramaturgo Nelson Rodrigues, que não se acovardou em mostrar um pouco de nós na íntegra. Mesmo quando vaiado, sem imaginar que mudaria a história da dramaturgia brasileira.
No entanto, parece que Machado de Assis, em sua literatura, já tinha esse juízo dessa sociedade hipócrita que iria ser desnudada por Nelson. Não foi somente em "Dom Casmurro" que Machado tentou mostrar a sociedade como ela era. Em "O Alienista", por exemplo, tivemos outra oportunidade de entender um pouco o que nos ronda, o que somos.
E parece que o artista brasileiro está bem fincado em nossas literaturas, para nossa bem-aventurança...
Acabamos de ter um texto adaptado de Guimarães Rosa indicado ao Prêmio Shell, assim como "A Hora da Estrela", de Clarice Lispector.
O espetáculo "O Alienista" trouxe ao artista Rômulo Estrela um dos seus maiores trabalhos em um palco teatral. Isso, de alguma forma, nos fortalece, pois temos histórias para contar, obras primorosas de literários brasileiros que merecem não adormecer em bibliotecas, mas sim estarem em plena forma
"Eu, Capitu" parece que chegou para chancelar o trabalho dos colegas.
Mais uma vez, a sociedade contemporânea é exposta no palco, só quem em 2023. Embora, como mulher, isso me entristeça, por saber que alguns episódios ainda se repitam, por outro me alegro em saber que, de alguma forma, estamos lutando.
A montagem desse espetáculo merece aplausos, principalmente pela escolha das atrizes.
Flávia Pyramo e Marina Provenzzano são duas atrizes inegavelmente sedutoras em seus ofícios. Quem assistiu ao espetáculo provavelmente não terá opinião contrária
Pyramo, tive a honra de conhecer quando esteve no Centro Cultural do Banco do Brasil antes da pandemia, com o espetáculo "Anastácia", de Fiodór Dostoiévski. A atriz estava radiante no papel, ao lado do grandioso ator Júlio Adrião e do dócil Odilon Esteves. Permito-me dizer que Odilon tem uma essência cordial, um querido que prezo muito.
Naquela época, eu apenas escrevia em uma página do Instagram e a atriz foi delicada e me agradeceu pelo pequeno texto que teci ao assisti-la.
Quando soube que ela estaria no Rio novamente, a procurei e ela, que porta de tremenda delicadeza, me convidou para a estreia. Sorte a minha!
E a única coisa que tenho a dizer sobre sua atuação, sobre a atriz, é que Flávia está plena e também madura o suficiente para encarar qualquer desafio, com sublimidade.
A atriz atua com eloquente firmeza, faz do seu corpo, da sua alma um espaço teatral, parece que seu sangue, suas veias, tudo está a serviço das artes cênicas. A mulher pula em uma mesa como uma pantera, de joelhos, uma loucura linda de ser apreciada! No texto, quando preciso, usa do improviso com deliberado saber. ELA CONQUISTA SUA PLATEIA!
Assistir o florescer artístico da atriz, em cada espetáculo, é como contemplar uma rosa desabrochando.
Fui ao teatro naquela noite já convicta que mais uma vez Flavia não me decepcionaria. No entanto, tive a oportunidade de ver o trabalho da sua parceira de palco, a Marina.
Marina foi estupenda! E para duelar no palco com uma colega como a Flávia, ela soube usar de toda técnica necessária, abusando do seu texto, da sua personagem. Confesso que não esperava o que assisti dessa atriz. Ela vem devagar e, de repente, sua força e técnica nos envolvem, deixando-nos boquiabertos com sua performance. Inicialmente, fiquei em dúvida mesmo quanto à atuação dela, e quando o texto corre, a atriz segue voando alto com suas meias coloridas. Afinal, a personagem é uma jovem menina.
Leninha (Flávia Pyramo) apresenta uma personagem maliciosa. Posso dizer um tanto quanto leviana, mas isso é o que a atriz tenta convencer a plateia. Mais que isso, faz uma alusão à forma com que a sociedade julga a mulher dos dias atuais, contemporânea. Uma mãe que não para em casa, enquanto a sua filha (Marina) se vê sozinha tentando estudar. E assim é Marina, uma menina que, ao começar a ler "Dom Casmurro", faz conexões da literatura com sua vida.
Esse feito teatral é interessante, nos questionamos e julgamos a personagem da mãe. A mãe não para em casa, a menina precisa dela, como ela não enxerga isso? E é exatamente assim que acontece, e tudo é culpa da mãe…
Enquanto Leninha vende tortas e vai ao supermercado, a filha parece entrar em outra dimensão, ter visões, algo meio psicodélico. Em uma dessas visões, ela conhece uma mulher e essa pessoa a entretém com algumas explicações implícitas.
Tudo isso acontece diante da iluminação da querida Ana Luzia Molinari de Simoni, indicada ao prêmio CBTIJ por um dos seus trabalhos no teatro infantil.
Fato que o trabalho da iluminadora faz toda diferença. Ana não só utilizou a iluminação do teatro, parece que o rider técnico para ela não foi o suficiente. Queria mais e abusou da iluminação, trazendo refletores em tripés para o palco.
A iluminação da Ana nos deu a oportunidade de enxergar o cenário e os figurinos que são inusitados demais. Uma delícia de se ver!
Na verdade, o figurinista parece um artista plástico, porque o espetáculo vai nessa direção, enquanto o cenário transmitia a sensação de que mãe e filha tinham acabado de se mudar, e tinham! E mais uma vez mudariam novamente. A dramaturgia e a cenografia se abraçaram e se explicaram!
A ficha técnica pareceu ter chegado a um conceito, porque tudo se casa, se conecta. O comportamento dissemelhante da mãe tradicional e os devaneios da filha, tudo está em harmonia, tudo se encontra.
E tudo isso nas mãos da diretora Miwa Yanagizawa, que mais uma vez acertou. Miwa, durante a pandemia, trouxe o espetáculo "Eu Matei Sherazade", um deslumbre para nós mulheres, assim como foi "Em Nome da Mãe", ao lado da atriz Suzana Nascimento, que levaram quase todos os prêmios de teatro da APTR.
Miwa entende sobre o assunto. O tema também pertence a ela e parece que ela defende sua opinião sem temer.
A elegância da diretora é visível, assim como as atrizes que ela dirige. Elas parecem estar à vontade, acho que esse é um dos elementos que fazem seu trabalho voar, pois fica em evidência o quanto todas elas criam forças enquanto atuam na direção dela.
Capitu fala sobre os transtornos que uma relação tóxica traz a uma mulher, e seus brutais resultados e desconfortos. Mais uma vez me sinto representada por Miwa e todas essas mulheres que nos defendem e que, de alguma forma, nos dão as mãos.
Posso dizer que as expressões corporais e faciais das atrizes são acompanhadas pela verdade, as carimbando com uma beleza cênica divina.
Um espetáculo que fala aos nossos ouvidos e nos abre a mente, principalmente o que ler nossos olhos quanto ao outro, ou melhor, quanto à outra. A peça nos condiciona a um banho de sororidade, mediante um exercício que se chama teatro.
E se menciona Machado se fala sobre machismo, se alimenta a brasilidade, claro que é bom!
Sinopse
Desde pequena, Ana tem por hábito se isolar em um mundo imaginário para fugir dos problemas que enfrenta em casa. Sua mãe, Leninha, vive um relacionamento abusivo com o marido. A tensão doméstica acaba por refletir no rendimento escolar da menina que precisa tirar boas notas em Literatura para não repetir o ano. A prova final vai ser em cima da obra Dom Casmurro, de Machado de Assis. No entanto, a leitura afeta diretamente a menina, que passa a enxergar pontos em comum entre o livro e sua vida.
Ficha Técnica
Direção Artística: Miwa Yanagizawa
Dramaturgia: Carla Faour
Diretora Assistente: Maria Lucas
Idealização e Direção Geral: Felipe Valle
Direção de Produção: Bárbara Galvão, Carolina Bellardi e Fernanda Pascoal (Pagu Produções Culturais)
Coordenação de Projeto: Trupe Produções Artísticas
Elenco: Flávia Pyramo e Marina Provenzzano
Direção Sonora, Trilha Original e Preparação Vocal: Azullllllll
Direção de arte: Teresa Abreu
Iluminação: Ana Luzia Molinari de Simoni
Produção Executiva: Fernando Queiroz e Juliana Soares
Assistente de Produção: Miguel Ângelo
Gestão de Projeto e Prestação de Contas: Felipe Valle e Mariana Sobreira (Fomenta Soluções Culturais)
Produtora Associada: Pagu Produções Culturais
Correalização: Fomenta Soluções Culturais
Realização: Trupe Produções Artísticas e Singularte Produções
Serviço
Espetáculo: “Eu Capitu”
Temporada: de 12 de abril a 07 de maio de 2023
Dias e horários: Quarta a sábado, 19:30 e domingo, 18h
Classificação: 14 anos
Duração: 80 min.
Local: Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) – Teatro II
Endereço: Rua Primeiro de Março, 66 – Centro – RJ
Informações: (21) 3808-2020 | [email protected]
Ingressos: R$30,00 (inteira) e R$ 15,00 (meia)
Estudantes, maiores de 65 anos e Clientes Ourocard pagam meia entrada.
Ingressos na bilheteria física: de quarta a segunda, das 9h às 21h (exceto aos domingos, cujo encerramento é às 20h) e no site bb.com.br/cultura