Vou seguir o "Deus do Tempo", Kairós, e escrever com a alma, pois foi nela que a Artesanal chegou, me tocou e fui a nocaute.
Não vou dizer que foi uma obra-prima. De repente teria de montar uma narrativa mais técnica para que o texto alcançasse o leitor, comprovando a plasticidade da obra. Não é isso que meu coração anseia. Quero que minha alma se manifeste através das minhas mãos, quero psicografar meu coração e tentar passar ao público tudo que senti ao me sentar no Teatro III do Centro Cultural do Banco do Brasil em uma tarde de sábado.
"Azul" foi um espetáculo muito esperado. Para quem não sabe, comecei a escrever para portais durante a pandemia. Escrevi sobre Ludwig e outras peças dessa companhia, ao assisti-las por meio de plataformas. Aproximei-se dessa cia, porque o encantamento deles me abraçou. Toda vez que assistia algo deles, me sentia em uma história de faz-de-conta.
Durante os dias em que estávamos enclausurados, Gustavo e Henrique desenhavam "Azul" e começavam a fazer movimentos para que a montagem acontecesse. Foram dias crueis, porque mesmo com a lei do incentivo a favor da execução e patrocinadores interessados na obra, o ex-ministro da cultura dificultava a liberação do aporte. Assim, "Azul" voltava para dentro do coração desses fazedores de teatro.
O desânimo chegou, a falta de esperança também, mas a cada dia tenho tido a certeza que o teatro ou seus anjos atuam e são vivos. Uma vez, conversando sobre um dos espetáculos, Henrique cintou-me sobre a construção dos seus figurinos. Jamais vou esquecer dele falando sobre os sapatos costurados à mão. Foi ali que entendi a proeza dessa cia e que ela iria ser recompensada pelos deuses.
Até que o Banco do Brasil disse: venham! Mas nem a Artesanal e nem o Banco do Brasil sabiam que a cia estava protegida pelos deuses do teatro e seriam presenteados. Sim, o teatro disse aos ouvidos desses meninos: obrigada por tanta devoção aos meus palcos! E assim chegou "Azul".
O espetáculo é diferente de tudo que assisti. Apaixonei-me pelos bonecos, por pessoas que não são pessoas, chorei e ainda choro com Violeta, irmã do menino Azul, que é autista.
A benignidade da menina e seu crescimento, a inocência dela, levou-me a uma queda sem precedentes. Saí do teatro envolta em uma emoção diferente.
Um dia desses, eu estava com Valentina, minha sobrinha de dois anos. Ela comia uma banana. Do nada, percebi que ela tentava tirar algo da boca. Era um fio de cabelo. Ao conseguir retirar aquele fio de cabelo da boca, o levou de volta para cabeça, como se dissesse: você fica aí, aqui é o seu lugar! Foi essa inocência que vi em Azul!
Tudo começa quando o irmãozinho de Violeta nasce. Ele chega durante o carnaval, proibindo a menina de seguir a festa carnavalesca.
Diante de todos os cuidados da chegada de um bebê em casa, Violeta teve de mudar seu comportamento. Ela, muito esperta, traça planos para devolver a criança à maternidade, por exemplo.
Nesse momento, ela dialoga com o artista Bruno de Oliveira. Todos soltam gargalhadas, eles conversam por meio de um centro de atendimento, enquanto Bruno lixa as unhas, com um fone nos ouvidos, inclusive trazendo o vocabulário dessas atendentes. Pela primeira vez vejo um boneco conversando com um artista. Adorei, ficou fantástico! Trouxe vida, verdade!
Brenda Villatoro faz a voz da Violeta, além de manipulá-la muitíssimo bem.
Alexandre Scaldini e a imensa Marise Nogueira, fazem os pais das crianças, com máscaras interessantíssimas!
A esses artistas posso escrever de uma vez só: eles nos alcançam. O palco, com eles, cria força, uma potência que ainda que eu escreva ou invente uma palavra, não seria o suficiente para descrever o trabalho de cada um deles. Agradeço muito a eles por abraçarem esse ofício e me ensinarem tanto.
Enquanto o suor do Bruno desce, pois cada movimento do boneco exige esforços meticulosamente orquestrados, a emoção na alma da atriz Marise precisa ser controlada com esforço. Porque é tudo muito sentido, envolvente.
Os movimentos deles são tão perfeitos, tão minuciosamente executados que ficamos em estado de graça. Como eles conseguem executá-los mesmo diante de tamanha emoção?
Através desse espetáculo entendemos mais ainda a importância do amor, da família, da forma carinhosa de saber lidar com as diferenças. Isso chega nos que estão atuando e nos que estão assistindo. Somos todos levados aos sentimentos. A meu ver, é exatamente aí que o teatro cumpre sua função, pois nos permite mudar, rever conceitos cristalizados.
O artista bonequeiro Dante sempre atua com majestade, soube dar à sua arte ferramentas que os fizessem vivos. Mais um pouquinho e eu passaria a acreditar em Pinóquio! Ele está quase lá. Os olhos e a capacidade de movimento dos bonecos são incríveis.
Fernanda Sabino e Henrique Gonçalves trouxeram os figurinos. O preto ocupa espaço, mas as cores para os acessórios despertam. De colares de bolas coloridas a golas, tudo com cores gritantes e que se harmonizam, inclusive com as máscaras dos pais e dos irmãos, um verdadeiro show. Tudo muito quente, mas infindavelmente equilibrado.
Henrique parece ter voltado com o mesmo amor de quando começou a história dessa cia.
Vi de perto o chapéu do tempo, uma cartola linda. O figurino do tempo, como bolsas de couro, foram elaboradas pelas mão mágicas dele e da sua parceira Fernanda Sabino.
A roupa dos bonecos estão lindas, coloridas e delicadas.
Para o universo lúdico, para o público alvo, tudo está na perfeita entonação.
Os objetos de cena são bem-vindos também, auxiliam muito a contar a história. O rádio no palco toca a música de Angela Maria, pois Azul chega no meio do carnaval. Era um rádio de tubo de vácuo vintage. Detalhe: que existiu durante a era de ouro do rádio. Perfeito! Tudo muito bem pensado.
A maquete da praia dentro da mala é de uma sutileza ímpar. Quando a família vai para a praia, um carro laranja/vermelho aparece no cenário. Logo depois, a praia aparece dentro dessa mala, um encanto. Tudo delicado demais. A iluminação também auxilia a cena, pois a ribalta é posta à frente dos artistas e o azul dá ideia do mar, juntando a esteiras, brinquedos de praia e uma bela concha. Deu certo!
O cenário tem um belo relógio do tempo do lado direito.
E quem o comanda é o tempo, interpretado por Tatá Oliveira. Ele, dessa vez, extrapola o "saber fazer teatro" e assume que a direção de Henrique o auxiliou a chegar naquele palco da forma que chegou. Ele é o dono de tudo. Se pararmos para analisar, o tempo realmente é tudo isso.
A expressão corporal do Tatá está linda, como um balé. Ele se define, mais parece um ser mágico. Inicialmente, pensei que era um antagonista, mas não! Detalhe: o antagonismo não tem espaço na cia, segundo Bicalho. Ele parece um ser encantado, algo esotérico, meio Harry Houdini, um ser mágico. Absurdamente bem construído! Com movimentos e falas precisas, que prendem nossa atenção.
O enorme relógio que ele movimenta no palco me fez lembrar alguns filmes norte americanos, como Benjamim Button ou A Invenção de Hugo Cabret. Não sei porque, mas fui levado a esses filmes, não só pelo imenso relógio, mas quanto à importância do tempo. E também pela beleza dessas artes, caso contrário não estariam tão latentes em minha memória. Parece que agora tenho mais uma belíssima referência de arte.
O espetáculo está maturando, segundo eles. No entanto, posso dizer que já foi parido e é perfeito aos nossos olhos.
O cenário tem uma estrutura que lembra uma ponte. Ela é utilizada por todos, mas cria mais força quando utilizada pelo tempo. Karlla de Luca é quem assina o cenário. Como sempre, atua com beleza. O último espetáculo dela também me chamou muito atenção: Pinóquio, com atuação do Gepetto Gilson Barros, artista consagrado. Ah! A maquete também é obra dessa cenógrafa!
A ideia da Karla em colocar o tempo em um segundo andar trouxe um conceito da soberania do tempo. E o texto ensinou como devemos seguir através dele. Incrível a concepção!
Confesso que fui ao teatro certa de me apaixonar pelo "Azul". Mas encontrei a danada da Violeta no caminho. A irmã que estranhou a chegada do irmão, pois teve que dividir a atenção dos pais com ela, deixar de ir ao carnaval, se tornar a ajudante da mamãe e passar por algumas privações, tal como deixar de tocar o seu piano para que o bebê dormisse.
Violeta rejeita o irmão inicialmente, mas depois aprende a amá-lo da forma que ele é. O mais emocionante é ela encontrar o canal de comunicação entre eles. Isso nos desidrata, porque as lágrimas descem dos nossos rostos e o fungar contido na plateia é certo. Inclusive, os pais (homens), que secam os rostos com movimentos bem contidos para não causarem impacto em seus filhos.
As crianças, durante uma hora, acompanham tudo. Sem chorar ou gritar, apenas acompanham. E é impossível não acompanhar, porque a estética do espetáculo é perfeita.
A direção musical da Bicalho é linda, comovente demais. Quando uma baleia se aproxima da praia, com movimentos suaves, é possível viajarmos com ela, e com o menino Azul, através da música desenhada e da conexão inesperada do menino com a baleia.
O texto, fabuloso, tem uma linguagem PERFEITA para o público alvo. Ele é bem costurado, com diálogos potentes. Ele se explica, é bem definido, inteligente, nos alcança. O conflito de Violeta é com ela mesma, pois um dia ela não aceitou o irmão. Mas ela cresce e amadurece. Muito mais que isso: ela o ama, o defende e explode em emoção ao defini-lo! A dramaturgia foi elaborada por Gustavo Bicalho e Andrea Batitucci.
Quanto ao Azul, eu vi um boneco que era autista não verbal, com ruídos e alguns comportamentos bem típicos. Incrível como eles conseguiram trazer a verdade! Tudo perfeito.
Não tem mesmo como dizer que se trata de uma obra-prima, porque É uma obra humana que apresenta o autismo da melhor forma, sem romantismo. Acho que é a melhor peça que eu assisti até hoje falando da neurodiversidade, vencido pela benignidade do outro. Esta é a maior recompensa deste trabalho!
A palavra autismo foi trazida por um psiquiatra, em 1912, para designar um estado onde o pensamento fica divorciado tanto da lógica quanto do realidade. Durante muitos anos era reconhecido como esquizofrenia infantil. A solidão extrema dessas crianças levou a várias pesquisas. Culpava a ausência afetiva das mães, conhecidas como "mães geladeiras".
Muitas crianças são verbais no início da infância, depois vão mudando. Isso causa dor. A mãe ama sem mesmo saber se terá esse retorno. Muitas vezes isso se torna frustrante, pois as expressões e as emoções desses filhos são opacas. Ser pai e mãe de autista é não se limitar à racionalidade, é seguir firme no amor e na fé.
Esses pais são verdadeiros ativistas quando reconhecem a síndrome. Alguns tentam não aceitar, mas, com o passar do tempo, percebem que correr contra a realidade é perda de tempo.
A Cia Artesanal convidou a doutora Cris Muñoz para consultoria desse projeto. Ela é atriz, autista em um grau menor, com uma filha autista não verbal. Essa mulher é uma estudiosa no assunto e tem lutado por espaços nos centros culturais para pessoas neurodiversas. Claro que ela tem o apoio do Portal Eu, Rio!, que também oferece serviços de acessibilidade. A profissional disse que ainda temos muito preconceito e a acessibilidade é muito pequena. Mas, obviamente, com a força motriz dessa profissional, mudanças virão.
Esse espetáculo, construído com tanta nobreza e cientificidade, faz com que aprendamos um pouco. Violeta nos ensina a respirar durante as crises do irmão, sendo essa uma das cenas mais belas do espetáculo.
Ela conversa com o tempo, traz a esperança de mudanças, do novo tempo. Estará em mim eternamente!
Penso que muitos espetáculos deveriam estar em escolas públicas, já que 80% da sociedade brasileira depende do ensino governamental. Azul deveria ser um deles. O governo deveria ter, em sua grade, peças dentro das escolas mensalmente, porque o teatro é um reflexo da sede da sociedade.
Tenho uma amiga, professora do ensino médio de uma escola pública, que conheci na UERJ. Fernanda Alcântara defende a educação afetuosa e é exatamente isso que Azul nos apresenta: afeto. O espetáculo vem carregado de uma compreensão e uma aprendizagem riquíssimas através do mais nobre dos sentimentos, o amor.
Esse menino tem muito a contribuir para quebrar esses grilhões que ainda abraçam uma parte da sociedade.
Sinopse:
A narrativa é transmitida através dos olhos de Violeta, uma menina de quatro anos, que está ansiosa pela chegada de seu irmãozinho, Azul. O que ela não imagina é que ele acabará ocupando um espaço inesperado na vida da família. Entre os ciúmes e a aceitação de um irmão tão diferente, Violeta descobre que é preciso aprender a lidar com o que a vida propõe para a solução natural dos conflitos. Afinal, o amor entre os irmãos é maior do que qualquer diferença que possa existir entre eles.
Ficha Técnica:
Texto e Dramaturgia Andrea Batitucci e Gustavo Bicalho
Elenco Alexandre Scaldini, Brenda Villatoro, Bruno de Oliveira, Carol Gomes, Marise Nogueira e Tatá Oliveira
Narração Cleiton Rasga
Direção Artística Gustavo Bicalho e Henrique Gonçalves
Concepção, Criação e Confecção de Bonecos e Máscaras Dante
Direção de Movimento dos Atores e Preparação Corporal Paulo Mazzoni
Direção de Movimento dos Bonecos e Preparação Técnica Máscara Teatral Marise Nogueira
Preparação Vocal Verônica Machado
Figurinos e Adereços Fernanda Sabino e Henrique Gonçalves
Cenário, Objetos, Adereços de Cena e Baleia Karlla de Luca
Cenotécnico Antônio Ronaldo
Direção de Palco Alexandre Scaldini
Desenho de Luz Rodrigo Belay
Operação de Luz Peder Salles
Trilha Musical Gustavo Bicalho
Desenho de Som Luciano Siqueira
Operação de Som Pedro Quintaes
Projeto Gráfico Dante
Direção de Palco Alexandre Scaldini e Edeilton Medeiros
Programação Visual Dante
Fotografia Christina Amaral e João Julio Mello
Cinematografia Chamon Audiovisual
Assistência de Produção Bruno Oliveira e Edeilton Medeiros
Consultoria para Acessibilidade e Inclusão Cris Muñoz
Acessibilidade em Libras Jadson Abraão – JDL Traduções
Produção Marta Paiva
Direção de Produção Henrique Gonçalves
Idealização Artesanal Cia. de Teatro
Realização Centro Cultural Banco do Brasil
Patrocínio Banco do Brasil
SERVIÇO:
Azul
Espetáculo da Artesanal Cia. de Teatro
Temporada: 13 de maio a 6 de agosto de 2023
Sábados e domingos às 16h
Classificação indicativa: Livre (recomendado a partir dos 3 anos)
Duração: 50 minutos
Centro Cultural Banco do Brasil – Teatro III
Capacidade: 63 lugares
Endereço: Rua Primeiro de Março, 66
Centro – Rio de Janeiro