No dia da morte do Zé Celso eu estava no teatro, grande propósito deste artista.
“Vestido de branco, cabelos desgrenhados tocando o nariz adunco, o incansável homem de teatro exala excitação. Com os olhos faiscando, José Celso Martinez Corrêa abre espaço entre a multidão que se aglomera em frente ao Teatro Oficina, em São Paulo, às 18h da segunda-feira, 2, data do centenário de lançamento do livro Os sertões, de Euclides da Cunha. Projeta a voz doce, messiânica, entoando os versos “meu cavalo está pesado / meu cavalo quer voar / atuar, atuar, atuar / para poder voar”.
E como Zé Celso, muitas vezes em sua vida, os artistas de “Kafka e a Boneca Viajante” também o fizeram: voaram lindamente, como águias, com cantos sem iguais, pios encantadores, que vislumbraram a plateia.
O espetáculo está no CCBB do Rio de Janeiro, cheia de graça, uma maravilha lúdica e sem arranhões.
A obra foi idealizada por Felipe Heráclito. O profissional tem mais uma na conta, assim como no espetáculo Ficções com Vera Holtz, que continua correndo o Brasil. Ele acertou precisamente, mais uma vez. Felipe está para Nicolau Flamel, transformando tudo em ouro. E o teatro agradece!
Obviamente que não adiantaria ter uma ideia se mãos potentes não estiverem à disposição para dar vida a qualquer idealização do belo e jovem rapaz. E, mais uma vez, Felipe, com uma boa mira em sua flecha, segue acertando os seus alvos, profissionais eloquentes no que fazem.
É preciso falar da dramaturgia. Essa foi adaptada por Rafael Primot, que tem talento de sobra. Mas confesso que jamais imaginaria ouvir um texto tão singelo e lúdico, belíssimo, sonhador, posso dizer também caridoso, com uma forma merecida de olhar para Kafka. A adaptação ficou lindíssima, uma viagem ao mundo por meio de músicas e rajadas de luz que sacodem a plateia, literalmente.
Já assisti outras obras de Rafael e afirmo que ele tem o dom de mexer com o coração alheio. Não hesita em nos levar aos nossos sentimentos sem cerimônia nenhuma. É possível sempre mergulhar em nossas memórias afetivas com ele.
Tenho sede de Kafka. Desde quando assisti ao espetáculo “Um Beijo em Franz Kafka”, a sua história, a sua arte de escrever, a sua devoção a literatura, me sequestraram. A literatura tornou-se a grande amante de Kafka, ele foi possuído por ela e nada mais teve tanto motivo de ser para ele que escrever.
A história por si é linda, ainda não existe certeza se a história é verídica, mas que é linda, isso não tenho dúvidas. E essa ficha técnica a levou para o teatro, com toda beleza merecida.
Só ficou uma dúvida quanto ao texto: a menção de Coco Chanel, que inclusive apresenta uma cena linda no espetáculo, cheia de luz e cor. No entanto, sabe-se que as irmãs de Kafka faleceram em campos de concentração por serem de família judia, enquanto a senhora Chanel atuava como espiã nazista. É bom mencionar esse fato para saber que o Chanel número cinco não cheira tão bem diante da cruel história nazista dessa senhora. Que me perdoem os admiradores!
Na boneca, não tinha como adivinhar essas mazelas, que só foram descobertas em 1985. Adorou quando chegou em Paris e usou as calças, essas popularizadas pela espiã. As calças eram proibidas para mulheres, havia uma lei para as parisienses, o decreto 1799. A boneca não se conteve em participar desse momento!
Temos um texto costurado com perfeição, as linhas de ouro que parecem permear nas grandezas literárias de Kafka com muita facilidade, como nos livros “Processo” e “Metamorfose”, textos que devem ser guardados a sete chaves, dignos de premiações e, lá no futuro, remontagens, para não ser esquecido em hipótese nenhuma.
Tony Lucchesi assina a direção musical, e ninguém poderia ter feito melhor. Se de um lado artistas brasileiros precisam cantar em línguas estrangeiras para alcançar o sucesso fora do país, eu adoro minhas músicas nacionais, que merecem ser exaltadas, sim, reconhecidas. TEMOS POESIA SUFICIENTE PARA ISSO! E Tony parece compartilhar dessa ideia. Embora, inteligentemente, durante a viagem da boneca, tenha trazido clássicos das músicas de cada país em que Brigitte esteve! La Vie en Rose, Por una Cabezza, Guantanamera, La Bamba, um verdeiro show de conhecimento musical de alto nível!
Tony trouxe nossas músicas nacionais: Rita Lee, Caetano Veloso, Raul Seixas, Ney Matogrosso, entre muitos outros, simplesmente deu conta do recado!
É necessário dizer que Tony estava no musical “A Metade das Laranjas”, super indicado a muitos prêmios.
Quanto à dramaturgia, pode-se dizer que a direção musical casou-se perfeitamente ao texto. Assistam para entender o tamanho da sofisticação do profissional. Ah! Os arranjos são dele também. Um trabalho que é "trabalhoso", requer muito do profissional.
João Fonseca é o diretor artístico do espetáculo. Ele estava com o musical 'Bonnie & Clyde', em São Paulo, uma obra belíssima. E mais uma vez mostrou a que veio. Kafka e a Boneca Viajante tem o brilho do João. Parece que todos os profissionais estiveram presos dentro do livro e saíram de lá certos do que iam fazer, do que iam nos contar. E DEU CERTO, MUITO CERTO!
Os figurinos são lindos, tons pastéis e não pastéis, sóbrios e não sóbrios, uma mistura equilibrada de cor no palco. João Pimenta assina indumentárias com uma caneta Montblanc Boheme Royal. Detalhe: com letras trabalhadas em cadernos de caligrafias, pois tudo está muito perfeito. Ele traz aos nossos olhos muita beleza, uma construção de modelos refinados e precisos.
Temos uma menina, uma boneca, um Kafka, uma esposa do Kafka, um soldadinho de chumbo, uma ave, uma mãe e tudo isso é levado para o palco com chancelas do tempo. Existe beleza, e existem também pesquisas. Isso está claro!
O cenário é um mergulho lindo que nos faz encontrar com Franz Kafka. Interessante, eu tinha exatamente essa ideia de espaço e do móvel que ele escrevia, uma escrivaninha colonial.
Os espaços eram preenchidos com cubos. No chão da caixa cênica tinham papéis que nos levavam ao escritor, papéis que não eram brancos, ou as cores sofriam alterações devido à iluminação.
Nas paredes, um desenho geométrico que, no decorrer do espetáculo, descobrimos sua função.
Um relógio está pendurado em uma vara cênica (não estou certa), que parece lembrar que o tempo estava passando para Kafka. De um lado, um relógio, do outro uma bola, que segundo meu colega, também crítico, significa o mundo.
Um trabalho muito lindo.
Já a iluminação viaja com a dramaturgia. Essa é assinada pelo querido Paulo César Medeiros. Paulinho parece ser o melhor amigo de Kafka e da boneca Brigitte, pois dá a eles a ideia fidedigna das viagens ao redor do mundo, a cada país o seu tom, perfeita sintonia com a direção musical. As palhetas de cores utilizadas por Paulinho são indecentes de tão perfeitas. Do início ao fim, o profissional comprova seu reconhecimento no mercado.
Vou abrir um parágrafo. Quando era jovem, eu estava diante de uma livraria e vi a obra da J.K. Howling, o Harry Potter. Tinha uns 25 anos. Quando comecei a ler aquele livro, ele me hipnotizou. Li todos os livros e pousei nos animais fantásticos. Fui crescendo e me apresentaram as Crônicas de Nárnia, logo li O Senhor dos Anéis e finalizei com O Lar das Crianças Peculiares. Todos são livros que adorei, mas o mais interessante é que meu mergulho neles foi tão profundo que, quando os assisti no cinema, tive a sensação que os roteiristas, figurinistas e cenógrafos tiraram tudo da minha cabeça. Tive essa sensação quanto a esse espetáculo: todos os profissionais de arte parecem ter vivenciado a literatura, pois existe uma identificação com a leitura. Tudo que assisti desse espetáculo que está no Centro Cultural do Banco do Brasil, dos artistas aos demais profissionais, resultam no que imaginei diante das leituras. Impressionei-me porque, no cinema, tive essa experiência e, pela primeira vez, tive no teatro. Graças às mãos de Nello Marrese!
Os artistas no palco não estão atuando uns com os outros, mas confraternizando, porque a sensação é que estão vivenciando a obra, que realmente estão vivendo aquilo naquele momento.
Uma mistura de lúdico com a minha vida não mais infanto-juvenil. Porém, aquela gostosura do meu passado de sonhos, o meu "eu pequeno" diante dos meus olhos.
Carol Garcia era a menina que perdeu a boneca. Ela entendeu o movimento de uma menina como deveria ser e não poupou verdade. Seu figurino está lindo e a ajudou a compor seu personagem. Ela, como menina, não se preocupa com os modos, da maneira com que o short aparece. Lembrou–me muito quando minha mãe chamava minha atenção: "senta direito, menina!"
Uma graça de atuação.
Lilian Valeska, dona de uma elegância ímpar. Ela está extremamente imponente no palco. Quanto à voz, essa então economizo palavras, porque não há mais o que dizer. Lilian é uma atriz de teatro que a cada dia parece dizer para ela mesma: serei melhor que ontem! Lilian entra no palco como a esposa de Franz Kafka e não há nela exageros. Tudo bem estruturado! O figurino de Lilian também potencializa sua personagem e tive a sensação do ditado: caiu como uma luva. Os cabelos, o corpo/postura, tudo nela está perfeitamente equilibrado. Se houver uma crítica menor que essa, fato que o crítico não estava em um bom dia.
Exuberante, acho que é essa a palavra mais certa para a estética visual e a atuação da atriz.
André Dias. Ah! André…
Que voz, que atuação, que ator…
Ele parece ter estudado com afinco a vida de um dos maiores literatos do século. Transcendeu com excelência tudo que o grande Kafka atravessou nos seus últimos dias.
A tosse, o curvar do seu corpo, tudo com uma exatidão que eu imaginava do Senhor K.
Não tenho certeza, mas acredito que o artista e a atriz Maestrini tiveram ensaios interessantes para essas construções de cenas, ao lado da direção de movimento de Marcia Rubim, que simplesmente não economizou olhares que fizeram a diferença nessa montagem.
André, quando encorpa o Soldadinho de Chumbo, ao lado da Maestrini, é perfeito, arranca de nós risadas que não conseguimos evitar.
Mais que isso: vi o Kafka a minha frente. Confesso que, muitas vezes, ao olhar o ator, minhas emoções eram diferentes, pois vi um homem que amava a escrita. Isso é o que mais me faz ser fã desse literato. Ele foi sequestrado por ela, mas, ao mesmo tempo, o meu "eu menina" também enxergava um personagem do faz de conta, aqueles que me seduziram no passado. André me raptou em suas cenas que são deliberadamente maravilhosas!
Maestrini, a Alessandra. Quando comecei a escrever para o teatro, lembro-me que era no Instagram. Claro que não tinha a oportunidade de levar a produção do que, na época, era o que eu enxergava como um texto crítico. Hoje será diferente. Lembro do espetáculo O Som e a Sílaba, onde a atriz me deu uma rasteira. Chorei o espetáculo inteiro com ela!
E volto ao teatro, volto a admirá-la…
Dessa vez, eu estava com um colega. Ele aguardou a saída da atriz do camarim. Ela, educadamente, me deu dois beijos. Fiquei gelada e queria dizer para ela como eu era fã por aquele trabalho, mas não o fiz. Mas ela me deu dois beijos!
Ao assistir Kafka e a Boneca Viajante, vi mais uma vez a atriz, o trabalho dela que é sem arranhões. Alessandra é a boneca, com uma peruca laranja (visagismo de Everton Soares, que merece prêmio por esse trabalho imenso). Ela simplesmente arrebenta a boca do balão! Alessandra/Brigitte, se entrega aos movimentos de uma boneca, visivelmente elevados. Mais que isso: a atriz parece estar tão à vontade nesse papel e o executa com tanta perfeição e natureza, que mais uma vez choro só de lembrar. Certamente, ela é a boneca que todos nós queremos. Ela desafia fios de pensamentos de uma boneca, tal como ficar sentada na cama e ver o tempo passar. É muito deprê, eu queria conhecer o mundo!
A boneca não vale nada, exatamente aí está minha sensação de pertencimento! (risos)
Sei lá, mas, de alguma forma, me vi diante de um espetáculo que mexe com nosso infantil, com nossas lembranças. Tudo tão bem costurado, tudo tão perfeito, tudo tão lindo e, ao mesmo tempo, tão lúdico.
Penso que assistiria mais algumas horas desses fazedores de teatro sem que me sentisse exausta. Muito pelo contrário, sonhando de olhos abertos naquela poltrona!
SINOPSE
Um ano antes de sua morte, Franz viveu uma experiência singular. Passeando pelo parque de Steglitz, em Berlim, encontrou uma menina chorando porque havia perdido sua boneca. Para acalmar a garotinha, inventou uma história – a boneca não estava perdida, mas viajara, e ele, um ‘carteiro de bonecas’, tinha uma carta em seu poder que lhe entregaria no dia seguinte. Naquela noite, ele escreveu a primeira de muitas cartas que, durante três semanas, entregou pontualmente à menina, narrando as peripécias da boneca vividas em todos os cantos do mundo.
FICHA TÉCNICA
KAFKA E A BONECA VIAJANTE
Adaptação do romance de Jordi Serra i Fabra
Alessandra Maestrini - Brígida, a boneca
Carol Garcia - Rita, a menina
André Dias - Sr. K (Kafka), soldadinho de chumbo
Lilian Valeska - Dora, Gaivota
Dramaturgia - Rafael Primot
Direção - João Fonseca
Direção musical - Tony Lucchesi
Direção de movimento - Marcia Rubin
Cenário - Nello Marrese
Iluminação - Paulo Cesar Medeiros
Figurino - João Pimenta
Visagismo - Everton Soares
Idealização - Felipe Heráclito Lima
Produção Executiva - Luiza Toré
Direção de produção - Amanda Menezes
Coordenação de Produção - Maria Angela Menezes
Administração - Sevenx Produções Artísticas
SERVIÇO
Temporada: Até 30 de julho de 2023
Horário: de quinta a sábado, às 19h30, domingo às 18h
Local: Teatro II – Centro Cultural Banco do Brasil
Capacidade: 155 lugares
Endereço: Rua Primeiro de Março, 66 – Centro – Rio de Janeiro / RJ
Informações: 21 3808-2020 | [email protected]
Classificação indicativa: livre
Duração: 90min
Ingressos: R$ 30,00 (inteira) e R$ 15,00 (meia)
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À venda na bilheteria física ou no site bb.com.br/cultura
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