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"Brás Cubas": uma obra que mergulha com perfeição na literatura

Olhar Teatral, Por Paty Lopes, Crítica Teatral

Em 04/09/2023 às 16:47:24

Bendita seja a Armazém Cia de Teatro!

Por vezes me questiono sobre algumas companhias de teatro, em como chegam a um nível tão elevado no palco. Detalhes que nos apresentam que não passam despercebidos, jogos cênicos que nos deixam boquiabertos, musicalidade que nos faz ficar sem palavras. São tantos feitos...

"Brás Cubas", que está no Centro Cultural Banco do Brasil, é responsável pelo que escrevi no parágrafo acima.

Primeiro, quando uma companhia de teatro resolve fazer uma montagem do senhor Machado de Assis, no mínimo, ela deveria entender antes de qualquer coisa, o romancista, que, sem dúvida nenhuma, cumpriu a função do teatro, que é ser o espelho da sociedade, ser uma síntese de quem somos. ("A História do Teatro no Rio de Janeiro", Barbara Heliodora)

E foram assertivos. Uma obra que soube mergulhar com perfeição na literatura que inaugura o realismo no Brasil. O realismo é caracterizado por opor-se às ideias românticas, os artistas desse período buscavam retratar a sociedade de maneira mais real, sem idealizações e subjetividade. Por isso, as obras desenvolvidas nesse período descrevem objetivamente e de maneira mais fiel possível a realidade e as personagens que a compõem.

Cumprindo a função da obra dramatúrgica, o artista Sergio Machado merece todas as boas exaltações que um crítico pode dar. Quanto amadurecimento, quanta competência do artista! Tive a sensação de estar de frente com um Paulo Autran, algo incomum. Porque há nele um fazer cênico que transcende no palco do CCBB. Ele atua como criança, como jovem e homem adulto, todos com absoluta beleza. Fiquei maravilhada com que assisti do artista. Quando se colocou no colo do pai/personagem, como um bebê, em uma tela de quadro vazada, fiquei pasma. Enquanto o narrador contava sua própria história, quase tive uma síncope. Essa cena é colossal! As expressões faciais do artista são um deslumbre! Ao mesmo tempo em que a narrativa era apresentada ao espectador, descrevendo sua vida desde criança, a atriz que faz o papel de mãe do personagem cantava uma canção religiosa. Posso dizer que orgasmos múltiplos cênicos me tomaram nesse momento. Que imagem belíssima, porque duas vozes que ecoavam ao mesmo tempo e eram compreensíveis. Uma cena que estará eternizada!

“Tanto quanto nos permite a estreiteza do espaço, eis em resumo o drama do Sr. Mauricio Arruda, drama interessante, bem desenvolvido e lógico. É igualmente uma pintura da família, feita com aquela observação que o Sr. Arruda aplica sempre aos costumes privados. Caracteres sustentados, diálogo natural e vivo, estudo aplicado de sentimentos”. (Crítica a Jose de Alencar, de 27 de março de 1866, escrita por Machado de Assis).

Quando jovem, ao lado da personagem Marcela, Sergio também me arrebatou. Ao encontrar o amor na maior idade, o fez com tanta nobreza que jamais esquecerei. Não pecou em nenhuma das três fases do personagem!

Quanto ao Jopa Moraes, posso dizer que já o vi em outros personagens, mas esse chega ser icônico, tal como o ator Leopoldo Pacheco ao interpretar o pirata Fred. Não sei de onde esses artistas tiram essas ideias. Jopa peita uma fala textual extensa, sem titubear. Ele fala com os olhos, com trejeitos. Como ele o fez é para poucos, pouquíssimos. Estou impressionada! Dizem por aí que filho de peixe, peixinho é, mas tubarão, meus caros leitores, não é peixinho!

Jopa acolheu movimentos de corpo que caíram muito bem na sua narrativa. Seu personagem tinha imponência. O visagismo do personagem também harmonizou exatamente com tudo já mencionado. Saí com outra impressão do artista nessa obra. Ele cresceu muito, causou-me impacto. Somente quem assistir à obra vai entender do que falo: ele narra a peça inteira, sem se cansar, sem perder o ritmo, sem deixar que a obra torna-se enfadonha.

“O traço é novo, a lição profunda” (crítica de Machado de Assis ao espetáculo "Demônio Familiar", de José de Alencar, que se assenta muito bem ao personagem, magnífica execução de Joca).

Lorena Lima, que voz e expressão! Sem contar com a beleza dela. Uma pérola valiosa, é o que pode-se dizer da atriz.

Na personagem Marcela, ela extravasa o seu saber cênico. Ela apresenta ao público movimentos corporais belíssimos. Lorena recheia o espetáculo com dinamismo. Sua presença de palco alimenta o cenário com mais beleza. Sua voz assemelha-se ao canto das sereias, afinal ela hipnotiza.

Como Marcela, é atrevida, esperta e, ao mesmo tempo, possui uma dosagem certa de dramatização. Ela brilha. Essa escolha da direção foi perfeita!

Bruno Lourenço, a ele nossa reverência. Encarna o próprio Machado. Ator completo, que traz ao palco uma representatividade muito grande, principalmente quando usa a sua voz para uma música. Parece um rap, que fala sobre a morte de um sineiro negro. Uma explosão artística. Enquanto os demais artistas atuam, ele se posiciona no palco. Que coisa incrível, suas expressões faciais atuam o tempo inteiro, mesmo ele não sendo o ator em evidência. Dono de uma elegância ímpar, é pomposo, fato. Vale mencionar também que o ator parece muito com Machado de Assis, é possível ver o literato à nossa frente.

Embora eu seja totalmente contrária à nova geração de ideias, onde somente um artista deficiente pode interpretar um artista deficiente, por exemplo; ou somente um artista branco pode fazer um personagem como Romeu Montecchio, posso dizer que a direção não pecou em sua escolha.

Faz um tempo que assisti ao espetáculo "Avesso", da Companhia Os Ciclomáticos. "Avesso de Shakespeare" era o nome, com outras visões do original. Romeu e Julieta homossexuais, creiam! Isso pode e deve acontecer! Eram negros! Teatro é a síntese de quem realmente somos, mesmo quando falamos sobre uma obra ficcional. Digo mais: a arte como imitação (mimesis) é a teoria criada para definir as obras produzidas pelo homem em que são imitadas perspectivas da natureza e a ação do homem. A palavra "mimesis" é grega e é traduzida por "imitação". Então não se pode imitar mais? Eu hein, i don't have patience!

Enfim, embora tenhamos como base de um artista a liberdade para absolutamente tudo, a ideia de trazer um artista que visivelmente nos leva a ver um literato, como Machado de Assis, à nossa frente, é linda, ainda mais quando o artista vem impulsionado pela força do seu teatro. Lindo mesmo!

Eu não o conhecia, mas virei fã.


Com sutileza, cantando e encantando a nação, batendo bem forte em cada coração, fazendo subir a minha adrenalina, como dizia Buziga, Edimin, Emife Nago Dilê, Ê, Pérola Negra...

Já Felipe Bustamante volta ao palco como o personagem Quincas. Ele é um artista que sempre dá conta do recado. Entende a companhia que representa, em sua performance nada falta. Sempre certo.

“Quem tem um capital de talento, tem necessariamente o dever de fazê-lo produtivo” (crítica de Machado de Assis em 13 de novembro de 1859, que também dimensiona o artista Bustamante)

Virginia é o grande amor de Brás. A atriz Isabel Pacheco torna a obra ainda mais plausível. Uma das cenas que mais me chamaram atenção foi quando ela e Brás chegam ao clímax sexual sem que se tocassem em cena, apenas com gemidos, um ao lado do outro, sentados como duas crianças. Um verdadeiro abuso de Paulo de Moraes!

“A arte, como todos os elementos sociais, tem se apurado, e o termo em que tocou, é tão avançado já, que nenhuma força conservadora, poderá fazê-la retroceder.” (crítica de Machado de Assis ao espetáculo "Feio de corpo, bonito n’alma – os amores de um marinheiro, que casa perfeitamente com a cena do diretor Paulo de Moraes).


Tudo é possível no teatro e saber delinear a obra com suas necessidades sem que se perca a beleza é um dos trunfos desta montagem.

Virgínia atua muitíssimo bem quando sente que seu marido desconfia de suas traições. Ela casa-se com Lobo. No entanto, descobre o amor que sente por Brás, com o passar do tempo. Sua indumentária está divina.

Embora Isabel tenha o nome da minha mãe, sei que não devo exaltá-la por minhas emoções, pois falo da sua obra, e essa é inquestionavelmente nada obsoleta.

"Protesto desde já uma severa imparcialidade, esta de que não pretendo afastar-me uma vírgula; simples revista sem pretensão a oráculo, como será este folhetim, dar-lhe-ei um caráter digno das colunas em que o estampo. Nem azorrague, nem luva de pelica; mas a censura razoável, clara e franca, feita na altura da arte crítica. (Crítica de Machado de Assis ao espetáculo "Mãe")

Isabel e Felipe estiveram no espetáculo "Hamlet", logo ao iniciarmos os retornos ao teatros, após a insuportável pandemia, e Jopa também. Aliás, Isabel e Sergio também atuaram como casal nessa obra, claro que tão bom quanto.

Posso dizer que as indumentárias da figurinista Carol são fantásticas, belíssimas. Ela soube fazer com majestade, buscando as cores certas. Marcela e o defunto estão com figurinos belíssimos. Machado de Assis veste uma túnica de acordo com sua época. As questões identitárias do século XIX, na cidade do Rio de Janeiro, foram respeitadas. Portanto, verificando em que medida a moda, apresentada pelas personagens, contribuiu para sua caracterização e para a construção da montagem. Mas há contemporaneidade também.


O cenário é uma loucura que ostenta criatividade e olhar de quem fez uma bela pesquisa para essa execução. Um bom gosto que já pertence à Armazém. A assinatura é dupla: Carla Berri e Paulo de Moraes. Uma casa que nos leva a época do livro, com objetos de cenas tão ricos que falam também o momento do nascimento da literatura. As cores utilizadas são perfeitas. Sei lá, mas quem viu "Hamlet" pode ter uma ideia do que fizeram. A Armazém não tem limites! Até as sancas das paredes são levadas ao palco. As portas de onde entram e saem os personagens são altas, bastante imponentes, com cores que contrastam com a parede envelhecida. Um show à parte. Assim como os objetos de cena. Posso falar sobre o lúdico do cavalinho de balanço, se falamos de um devaneio do personagem e autor. A ideia foi muito bem-vinda.

Posso dizer que escrever sobre Machado, o "Bruxo do Cosme Velho", é uma honra para mim. Poder mencionar esse nome também é de grande responsabilidade, pelo peso que carrega. Confesso que não sou uma leitora do literato, mas conheço suas obras, como todo brasileiro que passou pelo Ensino Médio. Sei da grandeza dele e onde chegou sem que tivesse a oportunidade de educar-se. Sei também que, ainda menino, trabalhava para ajudar no sustento da família. Machado é um dos brasileiros que merece nossa reverência e orgulho. Sabemos o tamanho do primeiro presidente e fundador da Academia Brasileira de Letras, sempre ao lado do amigo e abolicionista Joaquim Nabuco, que na época era o secretário-geral da ABL.

“Uma cobra invadiu-me o cérebro: mas felizmente foi uma cobra de vidro, que me proporcionou agradáveis momentos de palestra literária com um certo menino magrinho que incorporou no físico e no valor mental ótimas conversas: delicioso passeio por obras e individualidades em companhia dum penetrante Virgílio. Excelente a contra crítica do Machado de Assis. Ah, se aquele negro ressuscitasse e viesse ler tudo quanto se tem dito dele, e ainda visse que monetariamente só vale 500 reis…” (De Monteiro Lobato sobre Machado de Assis).


De Monteiro Lobato nos dias atuais, fala-se de seu lado sombrio ao virar o rosto à diversidade. Quanto a Machado de Assis, suas obras são mais atuais que nunca, e não é rechaçado por nenhum brasileiro.

Despeço-me desta forma: “não farei análise mais funda. A minha probidade de cronista está satisfeita; mas dela não precisa a consciência pública para avaliar o desempenho do 'Brás Cubas' do diretor Paulo Moraes. Não se comenta Shakespeare, admira-se.” (Machado de Assis, como crítico teatral, O ESPELHO, 11 de dezembro de 1859)

Sinopse

A peça da Armazém desmembra o personagem Brás Cubas em dois. Sérgio Machado interpreta Brás Cubas desde seu nascimento até sua morte (não necessariamente nessa ordem) e Jopa Moraes assume Brás Cubas já como o defunto que narra suas memórias póstumas. “Esse defunto está pouco vinculado ao século 19, quer e precisa se comunicar com as pessoas de agora”, comenta o diretor. A dramaturgia tem uma estrutura em três planos: o plano da memória – que são as cenas vividas por Brás; o plano da narrativa – onde entram as divagações e reflexões do defunto; e um terceiro plano em que o próprio Machado de Assis (vivido por Bruno Lourenço) invade sua narrativa com comentários que visam conectar contemporaneamente suas críticas à sociedade brasileira. “Nosso Machado não é um personagem biográfico. Embora todas as questões que o personagem coloque na peça tratem de assuntos sobre os quais Machado escreveu, estão colocadas em contextos diferentes. É uma brincadeira a partir de detalhes biográficos. Um personagem imaginário tentando se comunicar com o nosso tempo.”, finaliza Paulo.

Ficha Técnica

Direção: Paulo de Moraes

Dramaturgia: Maurício Arruda Mendonça

Montagem da Armazém Companhia de Teatro

Elenco/personagens: Sérgio Machado (Brás Cubas), Jopa Moraes (Defunto), Bruno Lourenço (Machado de Assis), Isabel Pacheco (Virgínia), Felipe Bustamante (Quincas) e Lorena Lima (Marcela e Natureza).

Músicos em cena: Ricco Viana ou Rafael Tavares

Cenografia: Carla Berri e Paulo de Moraes

Iluminação: Maneco Quinderé

Figurinos: Carol Lobato

Direção Musical: Ricco Vianna

Preparação Corporal: Patrícia Selonk e Paulo Mantuano

Colaboração na Dramaturgia: Paulo de Moraes

Designer Gráfico: Jopa Moraes

Fotografias: Mauro Kury

Cabeça do Hipopótamo: Alex Grilli

Direção de Produção: Patrícia Selonk e Bruno Mariozz

Produção Executiva: Sérgio Medeiros

Assistente de Produção: Amanda Rumbelsperger

Coordenação do Projeto: Paulo de Moraes e Patrícia Selonk

Realização: Centro Cultural Banco do Brasil

Serviço

Estreia nacional de "Brás Cubas": dia 23 de agosto de 2023, quarta-feira, às 19h

Temporada: de 23 de agosto a 01 de outubro de 2023

Dias e horários: Quarta à sábado, às 19h, e domingo, às 18h.

Centro Cultural Banco do Brasil – Teatro II

Rua Primeiro de Março, 66, Centro, Rio de Janeiro

Informações: 21 3808-2020 | [email protected]

Valor do ingresso: R$ 30 (inteira) e R$15 (meia)

Estudantes, maiores de 65 anos e Clientes Ourocard pagam meia entrada.

Ingressos adquiridos na bilheteria do CCBB ou antecipadamente pelo site bb.com.br/cultura

Funcionamento do CCBB Rio: de quarta a domingo, das 9h às 20h (fecha às terças).

Capacidade de público: 153 lugares

Classificação: Indicado para maiores de 14 anos.

Duração: 110 minutos






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