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“Nem todo Filho Vinga”: a favela como ela é

Olhar Teatral, Por Paty Lopes, Crítica Teatral

Em 23/09/2023 às 23:18:16

Confesso que não sabia por onde começar a escrever sobre o espetáculo “Nem todo Filho Vinga”, até assistir uma entrevista com o artista Luiz Miranda, feito pelo artista Michel Melamed. O consagrado artista, negro e nordestino, fala sobre sua personagem Dona Edite que, na época, fazia parte da "Terça Insana", um grupo de artistas que se reunia para pequenas cenas humorísticas. Dona Edite apresentava o quadro “Como inducar seu filho na favela”. Luiz Miranda fala sobre a verdade da personagem por ele criada. Dona Edite era divertida e eu jamais imaginaria que aquele quadro vinha recheado de algumas verdades vividas pelo artista.

https://www.instagram.com/reel/CxbU9SWgDxr/?hl=pt-br (cápsula da entrevista)

Luiz fala sobre a fome que abraçava o Brasil em uma determina época, momentos difíceis vivenciado por ele e ao redor dele.

O artista deixa claro que muita coisa não mudou. A verdade, segundo ele, é que as pessoas meteram ou, podemos dizer, que tem metido o pé na porta. Ele ainda completa que, quando os negros quilombolas fugiram, era porque estavam no limite. Não cabia mais aos negros apanharem no Pelourinho levando chibatadas. Luiz Miranda deixa claro que o povo se cansou e isso não tem mais como parar. “Um pé na porta bem-dado. Abre!”

Podem até tentar calar. Assim fizeram em 1937 com "Capitães de Areia", quando Jorge Amado fez uma das maiores denúncias sociais, através da sua arte, mas o freio já tinha começado a se gastar.

"Nem Todo Filho Vinga" está no Centro Cultural da Justiça Federal e, em breve, no Centro Cultural do Banco do Brasil. Então, pode-se dizer que essa porta não abriu, ela foi simplesmente arrombada. Passar nesses editais é complexo, exige um projeto redondo, bem desenhado, além de ser muitíssimo concorrido.

Penso que o espetáculo não precisa de mais críticas. Ele chegou onde muitas cias queriam chegar, em espaços onde o coletivo está e estará.

No entanto, posso dizer que minha resenha está em um veículo de comunicação com um bom alcance e, se as escritas podem levar o público ao teatro, por que não fazê-lo?

E por que devo fazê-lo? Porque acho pertinente a obra. Acima de tudo, necessária!

Esses filhos da sociedade em vulnerabilidade precisam vingar! Tenho dois motivos iniciais que me levam a escrever este texto: são eles Wesley Carvalho - morto aos 17 anos na porta de casa, na periferia do Rio de Janeiro - e Heloísa dos Santos - criança de 3 anos, assassinada pela polícia rodoviária federal, na Baixada Fluminense. Ambas as mortes aconteceram longe de onde está a oligarquia carioca. Seria por acaso? Não!

Machado de Assis e Xangô, ambos carregam seus machados. Um com o Machado da literatura, que fere e fala o que deve ser dito, e o outro com o poder da justiça (a arma representa o equilíbrio e a dualidade dos fatos), segundo os orixás, que são deuses da religião de matriz africana. A ideia foi fantástica. Uma ponte de absoluta perspicácia.

A dramaturgia, a meu ver, é um ponto alto. É tão bem costurada que chego a me perder na hora de tentar desnudar ou fazer observações das camadas que foram trazidas nessas escritas, as entrelinhas recheadas de histórias. O texto está bem cerzido, embainhado com esmero, que provoca análises mais profundas. Um banho de verdade que a sociedade não quer enxergar e, com isso, todos nós perdemos. TODOS!

Quando entramos no Teatro da Caixa Cultural, que esteve parado por algum tempo, ouvimos um grupo de artistas cantando e tocando. Tudo bem animado.

De uma frase de Machado de Assis, que há pouco descobri ser um negro, o espetáculo se desenrola, como um papiro. Ele vai criando formas, tudo muitíssimo embasado e enlaçado.

Não serei leviana: a dramaturgia foi o que me pegou. Porque é muita verdade trazida ao teatro, algo que vejo diariamente nos jornais e que me fazem questionar. Até quando essas crianças, jovens, homens, mulheres e idosos continuarão atravessando esse INFERNO???

“Nem Todo Filho Vinga” conta a história de Maicon, um jovem negro e cria da Favela da Maré. Após ingressar na Faculdade de Direito na UFRJ, passa a confrontar os ideais de justiça do Estado Brasileiro diante dos inúmeros eventos de injustiça que ele e seu grupo de amigos vivenciam diariamente. Ao longo do seu ano letivo, Maicon sente na pele como essas políticas de precarização abalam todas as esferas da vida de pessoas periféricas, chegando ao ponto de colocá-lo contra seu melhor amigo.

São dois jovens da mesma comunidade, que seguem caminhos diferentes, algo muito comum entre os que vivem nessas localidades.

A ideia da diretora foi trazer um mergulho na realidade dentro da comunidade. A Maré é a referência. O começo do espetáculo já nos leva ao choque de realidade: jovens se divertindo, comemorando a vaga do curso de Direito em uma universidade federal do personagem Maicon, até que os tiros começam.

Aquilo me irritou, achei o som muito alto, pensei comigo mesma: o técnico de som extrapolou! Até que me dei conta do que analiso quando o helicóptero do Bom Dia Rio, um jornal local, por volta das seis e meia da manhã, ronda as comunidades próximas à minha casa e penso toda vez: se daqui isso irrita, incomoda, imagina aos moradores da comunidade que estão mais próximos? Como ficam os bebês nos berços? Se fosse só isso, tudo bem. Mas não: toda vez que esse helicóptero aparece, já sou informada pelo jornalista Flávio Fachel, o âncora do jornal, que há na localidade uma ação policial. Aí entendo que, além do barulho estrondoso e irritante das hélices, os tiros também fazem parte da “sonoplastia” dos favelados.

Então, o técnico não erra, o mergulho começa aí! Mas é aquilo: batismos de imersão são bem-vindos somente em vivências de idiomas fora do Brasil para os filhos da elite brasileira. Tentar entender o que o favelado passa, não é legal. No entanto, entende-se que somente conhecendo os fatos podemos mudar o rumo da história. Viver em um país europeu é ótimo, mas lá, ou em qualquer país desenvolvido, a nação pensa num todo. Já por aqui…

Quando o jovem da comunidade começa a estudar e percebe que as leis ensinadas pelo professor não são aplicadas como deveriam para a parte da sociedade que ele está incluído, isso o faz rever seu posicionamento. E questionamentos são levados à sala de aula. Os colegas de turma são alienados, auxiliam ainda mais o desequilíbrio da balança da deusa Thêmis, que representa a justiça.

Aliás, sempre fui criada entendendo que somos todos iguais, e, na verdade, não somos. Todos somos diferentes! Exatamente por isso, hoje a luta a favor da inclusão tem chegado com mais força em todos os setores. O que deveria nos igualar são as leis, que no Brasil só são existem para uma parte dos brasileiros. Sem dinheiro no banco, ela não existe. FATO!

A questão da cota na universidade é defendida e apoio muito. Não admito que falem mal delas. No dia em que os presídios não estiveram cheios de homens pretos, universidades públicas e privadas com mais adolescentes e jovens negros e também mais pretos em condomínios de luxo, aí sim que afrouxem as cotas! Mas veja bem: se tivermos retrocesso de 1%, que as cotas voltem com mais peso. Fora isso, que catem coquinhos no asfalto!

A cultura das famílias da comunidade também está presente. A questão do aborto, onde a jovem da comunidade não tem dinheiro para o procedimento, ao contrário das mulheres privilegiadas financeiramente. O aborto só não é legalizado no Brasil para pobres, isso também é um fato! Essa hipocrisia é que abafa o desenvolvimento desse país!

O espetáculo tem movimentos corporais e iluminação de impacto. Muita música. A capoeira é levada à narrativa, o que mais uma vez eleva a dramaturgia. A capoeira foi inventada pelos negros. Representada e defendida em sua origem por eles também. Esses que foram levados pelo estado para lugares não adequados para esses seres humanos!

As drogas e as armas fazem parte da montagem, afinal fazem parte da realidade dessas pessoas. Os artistas são todos de comunidade, quebrando as estatísticas, mostrando ao sistema que há sangue nas veias de cada um deles. Alguns já premiados, outros ocupando espaços que antes não eram ocupados. Um artista paraibano defende seu estado. Para quem não sabe, os nordestinos também encontraram nas comunidades acolhimento de espaço. Para quem não conhece, na comunidade Parque União tem os melhores restaurantes nordestinos do Rio. Uma delícia e com bons preços.

Como pipocas em uma panela destampada: muito quente, impossível de ser parada, esses artistas vão seguindo, saltando alto, pipocando pelo mundo!

Corajosamente, esses jovens gritam as verdades que atravessam seu dia-a-dia. São destemidos! São afrontosos! Em uma das cenas, se apresentam, apresentam os seus personagens no teatro e na realidade, se emocionam e nos emocionam!

Penso que no futuro, lá no futuro, independente do resultado da ausência do governo para as comunidades carentes, principalmente para a cidade do Rio de Janeiro, uma coisa eu tenho certeza: que os estudiosos e leitores destes conteúdos estarão cientes que nós, da cultura, lutamos bravamente. Que o teatro cumpriu sua função e os artistas deram o sangue para chegarem, para transformarem! Abrem e derrubam portas!

O espetáculo é um mergulho na realidade, aquela que uma parte da sociedade já conhece de longe. Penso ser necessário estar presente, divulgar, fazer acontecer, mudar esse futuro. Não falo de mais uma montagem, mas de uma obra com indicações a prêmios muito importantes do teatro. Onde você entra nas vielas, passa pelos irmãos da igreja, sente raiva, sente a verdade, sente pena, sente o que muito brasileiros sentem, e nada podemos fazer.

Quando você sai de casa e vai assistir a um trabalho como esse, você está apoiando esses artistas que, com muita dificuldade, chegaram no palco da Caixa Cultural para te mostrar como a vida realmente é. Mas juntos podemos protestar e mudar, reverter essa história!! BORA MARÉ, BORA BRASIL!


Companhia Cria do Beco

A Cia. Cria do Beco é um grupo formado por jovens artistas negros, universitários e moradores do Complexo de Favelas da Maré, no Rio de Janeiro. A peça nasceu da cena que venceu como “Melhor Esquete” na 9ª edição do Festival Nacional de Teatro Universitário – FESTU, em 2019, e é inspirada no conto “Pai contra Mãe” de Machado de Assis.

Parabenizo Felipe Cabral, que organiza o Festu e tem dado oportunidades para muitos jovens periféricos. E também ao crítico Gilberto Bartholo. Mesmo antes desse movimento, ele esteve na Maré assistindo à montagem, já trazendo a notícia ao público que um forte espetáculo nascia!

FICHA TÉCNICA

Dramaturgia: Pedro Emanuel e da Cia Cria do Beco

Elenco: Anderson Oli, Camila Moura, Edson Martins, Jefferson Melo, Natália Brambila, Ramires Rodrigues, Yuri Domingues e Zaratustra

Encenação: Renata Tavares

Direção Musical: Renata Tavares e Zaratustra

Diretora de Movimento: Gabriela Luiz

Figurino: Tiago Ribeiro

Assistente de Figurino: Lucas de Souza

Iluminação: João Gioia, Lucas da Silva e Raimundo Pedro

Cenografia: Flávio Vidaurre

Ass. de Cenografia: Rafael Rougues

Operador de som: Edson Martins

Contrarregragem: Dianny Pereira e Mirella Sousa

Assistente de Produção: Gabriela Luiz e Sheilla Cintra

Produção e Produção Executiva: Ramires Rodrigues e Renata Tavares

SERVIÇO

Espetáculo: Nem Todo Filho Vinga

Local: Teatro da Caixa Nelson Rodrigues – Av. República do Paraguai, 230 – Centro – Rio de Janeiro/RJ.

Data: de 21 de setembro a 01 de outubro de 2023

Horário: quinta, sexta e sábado, às 19h; domingo, às 18h.

Ingressos: R$ 20 (inteira) R$10 (meia), disponível no link e na bilheteria do teatro.

(Meia-entrada para clientes Caixa e casos previstos em lei)

Classificação Indicativa: 14 anos




























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