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Visões negras importam

Elemento Suspeito, duas décadas depois, volta a retratar racismo na ação policial

Centro reedita, desta vez com estudiosos criados na favela, pesquisa sobre a cor na abordagem e na arbitrariedade no Grande Rio


Abusos, como o retratado por Luiz Morier na foto que levou o Prêmio Esso, se repetem nas abordagens policiais, lembrando os tempos da escravidão Foto Arquivo JB ABI

Três pesquisadores negros, com origem em favelas do Rio, serão os responsáveis pela reedição da pesquisa Elemento Suspeito, sobre racismo nas abordagens policiais na capital fluminense, sob a coordenação da cientista social Silvia Ramos, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, da Universidade Cândido Mendes. A primeira edição, realizada em 2003, confirma o perfil dos mais abordado nas ações policiais: masculino, jovem de pele negra e residente em áreas periféricas. Cerca de 55% dos entrevistados que haviam sido parados pela polícia alguma vez se autodeclararam pretos, 33% eram brancos. O estudo vai mostrar o que mudou nessas duas décadas que separam uma pesquisa da outra.



A pesquisa “Elemento suspeito” ganha uma reedição, duas décadas depois, em meio a casos que acenderam um farol sobre o racismo e a brutalidade cotidianos nas estratégias de policiamento. Casos como o de George Floyd em Mineápolis, o de João Pedro em São Gonçalo e o de João Alberto no Carrefour de Porto Alegre confirmam que a presença preventiva de agentes de polícia e vigilantes é um dispositivo de poder de vida e morte que afeta o tempo todo homens negros, além de jovens e crianças pobres em favelas e periferias do Brasil.

Ouça no podcast do Eu, Rio! (eurio.com.br) o depoimento do pesquisador Diego Francisco, doutorando da UFRJ, sobre as mudanças nas estratégias de segurança, no racismo estrutural e no protagonismo negro desde a primeira edição da pesquisa 'Elemento Suspeito'.

Em 2021, as condições para alterar as relações da polícia com uma parte da sociedade, especialmente com cidadãos negros e pobres, estão diretamente ligadas à nossa capacidade de descrever e analisar o que ocorre no cotidiano das ruas; a conhecer os mecanismos dessas dinâmicas quase sempre ocultas e, também, à mobilização de vozes de especialistas, ativistas e mídia sobre vivências e opiniões acerca do binômio racismo e polícia. Mais do que nunca é preciso compreender detalhadamente as relações entre policiamento e racismo. Este ano, a investigação terá como foco apenas a cidade do Rio de Janeiro, mas há expectativa de que no futuro, com apoio financeiro e parcerias, ela possa alcançar também outras cidades do país, explica o documento que apresenta o levantamento, coordenado por Silvia Ramos, do CeSec, integrante da equipe do levantamento de 2003.


Diego Francisco, um dos pesquisadores da atual versão, avalia que as análises acontecem em contextos diferentes. A pesquisa atual vai incluir um levantamento quantitativo sobre a proporção de pessoas abordadas, a qualidade da interação policial e opiniões a respeito das polícias e das operações policiais. Também serão explorados aspectos das perguntas que os policiais fazem nas abordagens. Uma delas é: "Como é se sentir um elemento suspeito em uma abordagem policial". O pesquisador Diego Francisco afirma ainda que a pesquisa é aberta a colaborações e vai contar com um conselho para assessorar os pesquisadores.



Quantas abordagens, em média, um policial faz por dia? Quantas abordagens os policiais de um batalhão fazem por mês? Quantas prisões, apreensões e quantos incidentes violentos ocorrem, em média, nessas abordagens? Qual o sentimento de um policial ao fazer uma abordagem na rua? O que o leva a suspeitar de uma pessoa e não de outra? Quais são os procedimentos padrão que policiais devem obrigatoriamente seguir nas abordagens?

Ouvir policiais e obter dados das corporações em resposta a essas perguntas básicas têm se tornado crescentemente difíceis ao longo dos anos. Na pesquisa “Elemento suspeito”, há quase 20 anos, apesar das dificuldades o CESeC teve acesso a documentos internos, fez dezenas de entrevistas com oficiais, conversou com praças e fez visitas a batalhões da Zona Sul, da Zona Norte e da Zona Oeste. A descrição desses encontros e dados está registrada no livro publicado em 2005.



Nos últimos anos, o CESeC tem tido grande dificuldade de acesso a informações das polícias e de entrevistas com membros da corporação. Essa não é uma dificuldade específica do CESeC. Projetos são inviabilizados e etapas de pesquisas são canceladas porque aguardam autorizações que não são concedidas. É comum que pedidos de entrevistas e visitas fiquem meses nas gavetas de comandos sem serem respondidos.

Pedidos de LAI têm sido respondidos frequentemente com negativas baseadas nos seguintes argumentos: “Este pedido enquadra-se no art 14, inc II e III, do Decreto Estadual nº 46.475/18, tendo em vista caracterizar-se como trabalho adicional, por necessitar de interpretação e consolidação dos dados das Operações, por

OPM”. Isso é comum até mesmo em estados com governos que se dizem progressistas. Na presente pesquisa “Policiamento e racismo no Rio de Janeiro em 2021”, decidimos não depender das respostas da polícia militar para dar seguimento às etapas. Depositamos os pedidos de entrevistas, documentos e dados e publicaremos o que for respondido pelas autoridades da polícia militar.

Estratégia para nosso tempo, com protagonismo negro na montagem da equipe

Duas importantes mudanças em relação às estratégias de investigação em 2003 são: em primeiro lugar, todos os pesquisadores contratados para esta pesquisa no CESeC são negros e especializados ou interessados na temática do racismo. A segunda mudança é que em 2003 tivemos o apoio de ativistas do AfroReggae e da Cufa e de estudantes do Coletivo Negro do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ para explicar aos coordenadores da pesquisa o que se passava com jovens negros nas ruas do Rio. Desta vez, foi criado um conselho para nos ajudar a compreender, articular e analisar em profundidade os resultados dos levantamentos.


Além da revisão da literatura e do levantamento de trabalhos sobre policiamento e racismo realizados nos últimos anos, o CESeC está desenvolvendo uma pesquisa que inclui um esforço de levantamento quantitativo sobre proporção de pessoas abordadas; qualidade da interação policial e opiniões a respeito das polícias e das operações policiais. Será aplicado questionário a uma amostra aleatória e representativa em pontos de fluxo. Também serão usadas técnicas qualitativas de pesquisa

(grupos focais e entrevistas). Nas pesquisas qualitativas, exploraremos aspectos como as perguntas que os policiais fazem nas abordagens; o que caracteriza uma revista humilhante; qual é a sensação de ter uma arma apontada para si e como é se sentir o elemento suspeito em uma abordagem policial.

Em resumo, a pesquisa pretende conhecer a incidência de abordagens policiais nas ruas da cidade do Rio de Janeiro nos diferentes grupos geracionais, raciais e territoriais; a qualidade dessas interações e as opiniões de diferentes setores da população sobre a polícia.


Em seu depoimento, o pesquisador Diogo Francisco destaca as inúmeras transformações nas duas décadas decorridas desde a primeira pesquisa “Elemento Suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro”, não apenas na vida da cidade, capital do estado do Rio de Janeiro, mas também no Brasil. "No Rio, vivemos ainda hoje os impactos da realização da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016. Como parte desses projetos, vimos serem implantadas Unidades de Polícia Pacificadora, em sua maioria nas favelas da Zona Sul e na Zona Norte. Posteriormente, vivenciamos a falência desse projeto, uma Intervenção Federal na secretaria de segurança em 2018 e, no mesmo ano, a execução de Marielle Franco. Sem falar da expansão das milícias pela cidade," argumenta em seu texto.

Por outro lado, ainda segundo o depoimento de Francisco, jovens e adultos constroem suas trajetórias para a produção de uma sociedade menos violenta e menos racista. É com essas pessoas que vivem cotidianamente o impacto de uma segregação espacial ignorada, que veem crianças perdendo suas vidas e que assistem, nos últimos anos, aos números da violência policial crescerem exponencialmente que queremos dialogar e ir a campo. Nessas duas décadas, sobretudo com o advento das cotas raciais, uma nova geração de estudantes adentrou as universidades brasileiras e impactou as pesquisas em todas as áreas de conhecimento, além de ampliar o debate sobre o tema do racismo, conforme demonstra a própria trajetória de Diego Francisco.

Hoje, existe ainda a possibilidade de construção de narrativas, denúncias de violações de direitos e compartilhamento de vivências da população negra, periférica ou não, nas redes sociais. A primeira edição desta pesquisa foi capaz de produzir dados elementares para a discussão no campo de pesquisa da segurança pública; desta vez temos a chance de radiografar os impactos persistentes de um fenômeno que se aprofunda, se intensifica e se amolda ao seu tempo. É empreender a busca por compreender mecanismos que reforça cotidianamente o lugar das pessoas negras nesta cidade. Ampliaram-se os interlocutores e, ainda mais, a responsabilidade, conclui o pesquisador, jovem e negro como a maioria das vítimas da violência.


RadioAgência Nacional, Agência Brasil e CeSec

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