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Década injusta

Caso Valério Luiz: Denunciado por homicídio de radialista adia julgamento há dez anos

Reportagem do "Portal Eu, Rio!" entrevistou assistente de acusação e representante de organização de direitos humanos que acompanha o processo; no início de maio, advogados que defendem mandante abandonaram terceira tentativa de formação de júri popular, além de quatro envolvidos no assassinato, ocorrido em 2012


Dentro e fora de campo, uma voz de contestação aos dirigentes do Atlético-GO. Foto: Reprodução/PUC TV

Goiânia, 2 de maio de 2022. O sol entre nuvens, com temperatura média máxima de 29 graus Celsius, aparentava que parte do tempo fechado seria tirado das sombras. Ainda que três dias antes o Ministério Público de Goiás (MPGO) e a família do radialista Valério Luiz de Oliveira tivessem recebido mais uma negativa sobre a noite que todos os dias se abate sobre suas vidas nos últimos dez anos: a defesa de Maurício Borges Sampaio, apresentado pelo MPGO como mandante do assassinato do comunicador em 5 de julho de 2012, tinha se desfeito. Objetivo: impedir a realização da primeira audiência do julgamento.

Mas não teve jeito e o tempo fechou mesmo na tarde daquela segunda-feira: Luiz Carlos da Silva Neto e Bruno Lacerda Franco Martins, que defendem Sampaio, se retiraram voluntariamente do plenário do Tribunal de Justiça (TJGO). O terceiro adiamento do julgamento do mandante, além de quatro envolvidos diretamente na execução (PM, ex-PM, motorista, açougueiro), foi o bastante para a acusação - constituída por um assistente, o advogado Valério Luiz de Oliveira Filho, e dois promotores - solicitar que a dupla de defensores pagasse multa, no valor de cem salários mínimos - o que equivale a cerca de R$ 120 mil. Ainda no dia 2, o juiz Lourival Machado Costa confirmou a aplicação da multa, e não só: o magistrado notificou à Defensoria Pública de Goiás (DPE-GO) para que assuma a defesa do réu, em quarta sessão plenária, no dia 13 de junho. A DPE-GO confirmou à reportagem que foi notificada da decisão judicial. Questionamos o TJ goiano em caso de Sampaio recusar a Defensoria Pública, e o órgão judiciário esclarece que "não comenta processos". "O juiz também não pode se manifestar sobre caso que está analisando, exceto nos próprios autos", completa.

Passados dez dias, no entanto, a seccional goiana da Ordem dos Advogados do Brasil contestou o fato de dois de seus associados terem sido multados. A decisão, segundo Valério Filho, foi deferida pelo desembargador José Paganucci Jr., que suspendeu "a obrigação de pagamento até o julgamento final da ação". "Peticionarei ao Presidente da OAB-GO, dr. Rafael Lara Martins, questionando se a decisão pelo ingresso da ação está subsidiada por parecer da Comissão de Direitos e Prerrogativas", comunicou Filho. "Submeterei a resposta à apreciação do Conselho Seccional, com a indicação de que o Vice-Presidente, Thales Jayme, representa três dos acusados no mesmo processo dentro do qual, agora, intervém a Ordem". Pedimos um posicionamento à OAB-GO, porém não tivemos retorno.

Em entrevista exclusiva à reportagem (disponível em vídeo ao final do texto), 'Valerinho', como é conhecido, destrincha as origens para as desavenças entre seu pai e Maurício Sampaio, dirigente do Atlético Clube Goianiense que já ocupou diversos cargos no clube e hoje é vice-presidente do Conselho de Administração.

"Existia uma relação de tensão entre meu pai e o Atlético-GO. A primeira crítica foi em 2007, em jogo no Piauí contra o Barras (PI), pela Série C do Campeonato Brasileiro. Valia acesso à Série B e meu pai falou, na transmissão, que o Atlético tentou comprar o resultado, subornando técnico e goleiro do adversário. Só que isso teria sido descoberto, a equipe entrou em campo com outros técnico e goleiro e o Atlético perdeu o jogo. Existem testemunhas que dizem que nessa ocasião o Maurício rompeu o relacionamento com o meu pai, dizendo que se falava mal do clube, não servia para ser amigo dele", relata o advogado.

"Os anos seguintes não foram sempre de entrevero, mas em 2010 houve outro episódio. Meu pai teria dito que os jogadores do Atlético estavam muito indisciplinados na concentração e havia denúncias até de uso de drogas e presença de prostitutas. O Atlético registrou boletim de ocorrência por calúnia e difamação, só que não se instaurou ação penal porque não apresentaram queixa", prossegue.

Filho de lendário cronista esportivo, Valério Luiz de Oliveira tinha acusado diretores do Atlético-GO por diversos malfeitos no clube, nos cinco anos anteriores. Foto: Reprodução/TV Serra Dourada



Relembrando as trocas de acusações, ele cita o jornalista Charlie Pereira. Colega do radialista na bancada do programa "Mais Esportes", exibido pela PUC TV, a reportagem apurou que Pereira teria sido obrigado por Sampaio a se demitir da emissora para manter o emprego na então Rádio 730 AM (atualmente, Sagres), da qual o empresário foi um dos sócios entre 2012 e 2015; outro dos acionistas era Joel Datena, filho do apresentador José Luiz Datena. Na emissora desde 1997, onde foi coordenador da editoria de Esportes, o jornalista dá uma versão diferente sobre a saída da PUC TV. "Eu trabalhei com o Valério dois meses, nossa relação sempre foi respeitosa, por ligação familiar. Nossos pais trabalhavam junto", conta.

"Meu trabalho por mais tempo era na Rádio 730 AM, e o Maurício me pediu para que ficasse lá, porque era uma regra que ele queria estabelecer. Queria começar comigo, mas partir para as demais pessoas da equipe. Aí, tive que me desvincular da PUC TV. A motivação foi a presença do Valério? Não posso afirmar isso, porque não me foi dito", ressalva.

Fonte ouvida pela reportagem pediu anonimato sobre a forma "unilateral" como é apresentada na imprensa a versão de Sampaio.

"Tem uma assessoria muito qualificada, que ele contratou, justamente para fazer contraofensiva midiática nesse processo do julgamento. Para além da defesa jurídica em si. Às vezes, sai alguma matéria dando bastante espaço para ele e sua versão de maneira unilateral, o que é preocupante. No limite, quando se está falando de Tribunal do Júri, trata-se de guerra de narrativas, que não faz uma avaliação só ou estritamente técnica. Então, a mídia, nesse momento, cumpre um papel central para onde vai o julgamento, por conta da decisão que cabe ao Júri. Alguns veículos que façam uma cobertura mais questionável eticamente é muito ruim, mas exceção", pontua.

Desafetos

Por outro lado, a rede de poder na qual Sampaio - preso duas vezes na investigação do assassinato de Valério Luiz - ocupa posição de destaque permitiu a ele conciliar a sociedade na emissora de rádio com a vice-presidência do Atlético-GO, além de atividades tão diversas quanto ser dono de uma escola. Entre 1988 e 2013, mesmo sem concurso público, foi tabelião do 1o Cartório de Protesto, Registro de Títulos e Documentos e Pessoas Jurídicas de Goiânia. De acordo com Valério Filho, a exoneração do empresário e cartola do clube goiano cerca de seis meses depois ocorreu devido à abertura do inquérito pelo assassinato do comunicador.

"No segundo semestre de 2011, quando meu pai estava saindo da TV Brasil Central para a PUC TV, o Sampaio deu entrevista falando que não gostava de duas pessoas na imprensa: o jornalista Marçal Filho e meu pai", recorda-se, recém-formado em Direito à época da execucação e órfão de pai ao lado da irmã Laura, psicóloga. Entramos em contato com Marçal, presidente do Sindicato dos Atletas Profissionais do Estado de Goiás (Sinapego), que se limitou a responder que "não tem o que declarar".

Denunciado pelo MP de Goiás foi tabelião por 25 anos, sem ter concurso público. Foto: Divulgação/Polícia Civil (PC-GO)

Atualmente em Brasília, uma jornalista de grande emissora que também pediu para não ser identificada, lembra que, a exemplo dela, "muita gente foi embora de Goiânia". Os profissionais temiam represálias se a cobertura desagradasse ao acusado de ser mandante do homicídio. Ela represa as lágrimas ao falar do colega assassinado. "Conheci o Valério no meu primeiro emprego. Era difícil para uma mulher, mas sempre foi bom trabalhar com ele, me ajudou muito. Era falastrão, pago para dar opinião, às vezes muito dura", emociona-se.

"É um sentimento de vai e volta, as coisas amenizam com o tempo. No início, era mais difícil, mas o pior é não ter o julgamento. O sonho dele era ter neto, e o pai dele morreu sem ver a justiça ser feita", conta. "Perdi meu pai, que era atleticano, para a covid-19, e parei de acompanhar o clube depois que ele morreu. Pedi para não me escalarem na cobertura da pandemia, nem do assassinato. Não sou imparcial".

No mesmo dia em que o julgamento de Maurício Borges Sampaio foi adiado pela terceira vez, a ARTIGO 19, ONG internacional de defesa das liberdades de expressão e de imprensa, circulou uma nota repudiando o abandono dos advogados durante a sessão no TJGO. "Hoje (02.05), às vésperas do dia mundial da liberdade de imprensa, a defesa e o acusado deixaram o plenário do Júri, inviabilizando a realização do julgamento, que necessariamente deve contar com a presença destes", destacou a organização. "Assim como nas oportunidades anteriores, a ARTIGO 19 seguirá acompanhando o caso, um dos mais emblemáticos de homicídio de comunicadores no país dos últimos anos".

Em 2018, a entidade - cujo nome remete ao trecho da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) que zela pelo direito à livre expressão -, publicou o relatório "O ciclo do silêncio". No documento, foram analisados 22 assassinatos de comunicadores ocorridos no Brasil, no período 2012-2016. Cada vítima é apresentada pelos respectivos perfis, as circunstâncias de sua luta e o estágio da investigação (ou a falta dela). O texto pode ser acessado na íntegra, clicando aqui.

Fotomontagem com a íntegra da nota da ARTIGO 19. Foto: Reprodução

A jornalista que trabalha na capital federal também comenta o surgimento do Instituto Valério Luiz, criado em seguida à execução do homenageado. Por meio da entidade, foi possível construir um grupo de pressão pela celeridade nas investigações, cujo inquérito, encerrado no início de 2013, chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) antes de ser proferida qualquer sentença. Uma série de manobras judiciais - como falso atestado de doença mental apresentado por um dos denunciados, rejeitado por junta médica do TJGO - têm sido usadas há dez anos para protelar o julgamento de quem matou e quem mandou o radialista goiano.

Ao longo da última década, a tese da acusação foi fortalecida por algumas entidades que se destacam pela promoção dos direitos humanos no Brasil, como o Instituto Vladimir Herzog e o Intervozes. A união dessas forças resultou na Rede de Proteção de Jornalistas e Comunicadores (clique aqui para saber mais), constituída desde dezembro de 2019.

Coordenador do Programa de Proteção da ARTIGO 19 na América Latina, o sociólogo Thiago Firbida participa da Rede e também falou com exclusividade ao Portal Eu, Rio! sobre o caso. Com ênfase no trabalho da organização, o papel da imprensa na cobertura do episódio e o relatório lançado quatro anos atrás. "A maior parte dos veículos faz uma boa cobertura, só a imprensa nacional poderia dar uma visibilidade maior", salienta. Confira a entrevista no vídeo ao final desta reportagem.

Na opinião de 'Valerinho', outras motivações para o crime se deveram a críticas que seu pai fazia sobre o que acontecia fora das quatro linhas. "E se intensificaram no primeiro semestre de 2012, sobre o envolvimento do Atlético na Operação Monte Carlo, que prendeu o Carlinhos Cachoeira. A empresa que ele operava em Goiás para fazer contratos fraudulentos com o governo era a Delta Construções, patrocinadora do clube na época", argumenta. Denunciados naquele contexto, Fernando Cavendish, um dos sócios da Delta, e o então governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, foram presos em anos posteriores por atos de corrupção que incluíam trocas de favores e presentes dados pelo empresário ao governante.

"No mesmo período, houve a Operação Caixa de Pandora, em que outra empresa envolvida - Linknet - patrocinava o clube, e meu pai falava que o Atlético tinha 'patrocinadores tenebrosos'. Em virtude disso, o fluxo de dinheiro caiu e se começou a ver os problemas", acrescenta. "Dizia que o Sampaio era descartável lá dentro".

Mas foram os dias seguintes à perda do título estadual para o Goiás, em junho, que levaram ao desfecho mortífero no mês seguinte. Após responsabilizar a Federação Goiana de Futebol pelo vice-campeonato, surgiu o boato de que Maurício Sampaio sairia do clube. Nas palavras do assistente de acusação do MPGO, seu pai teria dito que "quando o barco está afundando, os ratos são os primeiros a pular fora". Dali em diante, ele seria persona non grata e os veículos onde trabalhava ficaram impedidos de cobrir o dia a dia do futebol rubro-negro.

"Cerca de 15 dias após [a saída de Charlie Pereira da PUC TV], veio a execução", rememora o filho. Já a discípula do radialista puxa pela memória uma precaução adotada no caminho até a redação, na semana anterior: ele tinha parado de ir para o trabalho de bicicleta, devido às seguidas ameaças contra sua vida.

A presidenta da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Maria José Braga, confirma que a entidade "está acompanhando o caso". "Já nos manifestamos junto com o Sindicato de Goiás, em várias ocasiões, sempre em solidariedade ao colega radialista", complementa.

Valério Filho começou a atuar no inquérito sobre a execução de seu pai um ano após se formar como advogado. Foto: Julio Maia/Instituto Vladimir Herzog

De pai para filho

Manoel José de Oliveira, o 'Mané', foi quem lançou a semente radiofônica na família. Natural de Pires do Rio, no sudeste de Goiás, começou a carreira na crônica esportiva de maneira inusitada, na década de 1960. Trabalhando em um restaurante frequentado por radialistas, ele se aproximou dos profissionais que comiam no local e simulava narrações de partidas de futebol. Quem conta é o neto, que acredita que, por sua vez, as equipes tinham interesse em comer de graça. Até que 'Mané' foi convidado para comentar uma partida do Campeonato Goiano e em seguida contratado. Nas décadas seguintes, tornou-se dono de equipes de rádio, empregando jornalistas em início de carreira.

Um dos primeiros jornalistas esportivos de Goiás, ele também tomou a dianteira para cobrar justiça para seu filho. Pela Série A do Campeonato Brasileiro de 2012, no pré-jogo entre Goiás e Avaí (SC), poucas semanas após o homicídio de Valério Luiz de Oliveira, houve um ato no gramado do Serra Dourada, com camisas e faixas alusivas ao radialista. Tomado de tristeza, saudade e indignação, 'Mané' bradou à torcida e à imprensa goiana: "Vocês me conhecem há 45 anos, me ajudem!". Falecido em fevereiro de 2021, aos 81 anos, era torcedor do 'Dragão' e foi velado no Ginásio de Campinas, bairro onde também se localiza a sede do clube.

Outro que é um dos principais nomes do jornalismo esportivo no estado, o senador Jorge Kajuru (Podemos-GO) apoia as iniciativas da família em prol de reparação no caso. Assim como o comentarista e apresentador Juca Kfouri, com quem Kajuru dividiu a bancada do extinto "Bola na Rede", exibido pela RedeTV! no início dos anos 2000. "É um absurdo tantas vezes repetido que obriga dizer: Justiça que tarda, falha", protesta o ex-diretor de redação da revista Placar.

Mas Maurício Borges Sampaio continua a ser saudado por pessoas como o atual presidente do Atlético Goianiense, Adson Coutinho, e o ex-presidente do Conselho Deliberativo do clube e ex-deputado federal, Jovair Arantes (Republicanos, filiado ao PTB na época do crime). Valério Filho lamenta que o Atlético-GO nunca tenha se pronunciado sobre o caso, assim como não conseguimos retorno do clube para comentar as denúncias contra o dirigente rubro-negro. No artigo "Por que mataram meu pai", veiculado na Pública, 'Valerinho' concluiu que "o futebol não é só futebol".

"Meu pai nem imaginava a profundidade das conexões aqui narradas, mas, quando o cartola e agora ex-cartorário, do alto da soberba, ordenou tão escandaloso assassinato, atraiu os olhares para si e deixou aparentes esquemas, que por isso ruíram. Como consentiam em dar tanta força a um homem só, a ponto de o deixarem se julgar em condições para decidir sobre vida e morte?", indagou, ao final do texto postado em setembro de 2015.

Assista, no vídeo abaixo, à entrevista exclusiva que realizamos com o advogado e assistente de acusação do Caso Valério Luiz, Valério Luiz de Oliveira Filho, e o coordenador do Programa de Proteção da ARTIGO 19 para a América Latina, Thiago Firbida.

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