Dezenas de jovens dormiam nas calçadas dos arredores da Igreja da Candelária, no centro da cidade do Rio de Janeiro, na madrugada de 23 de julho de 1993, uma sexta-feira. No dia anterior, alguns deles haviam apedrejado um carro da Polícia Militar (PM), mas provavelmente não imaginavam que haveria retaliação por seu ato de vandalismo.
O revide veio por meio de uma ação desproporcional e covarde, cometida por policiais militares, que envolveu a execução de oito dos jovens sem teto. As vítimas tinham entre 11 e 19 anos de idade. Wagner dos Santos, que foi alvo de quatro disparos, conseguiu sobreviver e acabou tornando-se peça-chave na elucidação do crime, que viria a ser conhecido como Chacina da Candelária.
Dois policiais militares e um ex-policial foram condenados pelo massacre, os três com penas que superam os 200 anos de prisão. Segundo o Tribunal de Justiça do Rio, o PM Nelson Oliveira dos Santos cumpriu pena até sua extinção, em 2008. Já o PM Marco Aurélio Dias de Alcântara e o ex-PM Marcus Vinícius Emmanuel Borges cumpriram suas penas até receberem indultos, em 2011 e 2012, respectivamente.
A condenação dos responsáveis e a comoção nacional (e até internacional) provocada pelo crime não evitaram que novas chacinas ocorressem no país e, em especial, no Rio de Janeiro. No mesmo ano, por exemplo, 22 pessoas seriam executadas na favela de Vigário Geral. No ano seguinte, foram 13 mortes na Nova Brasília. Os assassinos eram, mais uma vez, policiais.
Passados 30 anos do crime, várias outras chacinas ocorreram no estado, vitimando centenas de pessoas. Em vários desses casos, os perpetradores foram agentes do Estado, que, segundo as leis brasileiras, deveriam proteger vidas.
Outros casos
Um estudo publicado em abril deste ano, pelo Grupo de Estudos de Novas Ilegalidades da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF), mostrou que, apenas de 2007 a 2022, foram registradas 629 chacinas decorrentes de ações de policiais no estado, ou seja, ocorrências em que três ou mais pessoas foram mortas (segundo a metodologia da pesquisa). Mais de 2.500 pessoas morreram nesses episódios.
O mesmo estudo também fez um recorte das “mega chacinas” policiais, ou seja, quando, segundo a metodologia da pesquisa, as ações de agentes do Estado resultaram em oito mortes ou mais, como na Candelária. Nesse período de 15 anos, foram registradas 27 ocorrências deste tipo, que resultaram na morte de 300 civis e de quatro policiais.
“Me parece que há uma continuidade bastante clara, de forma historicamente situada, que se relaciona à ausência de um efetivo controle democrático da atividade policial. Em regimes democráticos, o uso da força é socialmente pactuado e deve ser feito nos limites estritos da lei”, afirma o sociólogo Daniel Hirata, coordenador do Geni/UFF.
Em depoimento enviado à Agência Brasil, em abril deste ano, o diretor-geral de Polícia Especializada da Polícia Civil fluminense, Felipe Curi, discorda da definição de chacina policial dada pelo Geni/UFF. Segundo Curi, chacinas são ocorrências “ilegais, indeterminadas e de forma aleatória de várias pessoas ao mesmo tempo” e que, portanto, mortes em operações policiais não poderiam ser consideradas chacinas, porque são uma “ação legítima do Estado”.
O estudo da UFF ressalta, no entanto, que parte dessas mortes pode ser resultado da desproporcionalidade no uso da força por policiais, ou mesmo serem consideradas execuções sumárias. Isso extrapolaria a definição de “ação legítima do Estado”.
Em maio de 2021, por exemplo, uma operação policial para cumprimento de mandados de prisão na comunidade do Jacarezinho, na zona norte da cidade, terminou com 27 civis mortos. Moradores da comunidade acusaram policiais de execuções extrajudiciais e relataram casos de pessoas que se renderam e mesmo assim foram mortas. Uma das vítimas foi o jovem Marlon Santana de Araújo, de 24 anos, que, segundo sua mãe, Adriana, foi morto dentro de uma casa junto com outros jovens.
“Uma testemunha disse que ele estava com as mãos para o alto. Ele se entregou mas, assim mesmo, eles perfuraram o meu filho. Eles iam matando e brincando com os corpos. Quem estava vivo sabia que ia ser o próximo”, relata a mãe.
O Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) reconheceu indícios de execução em pelo menos três mortes. Um desses homicídios virou processo criminal na Justiça do estado.
Em Costa Barros, em 2015, um carro com cinco amigos que voltavam de uma comemoração foi fuzilado, com mais de 100 tiros, por policiais militares. As vítimas tinham entre 16 e 25 anos e não eram criminosos, não estavam armados e não ofereciam nenhum risco aos agentes que os mataram.
A mãe de Marlon, Adriana Santana de Araújo, diz que as chacinas continuam e não vão parar, devido à impunidade. “Depois dessa matança, teve matança no Salgueiro [em São Gonçalo, com nove mortos em novembro de 2021], depois teve a matança do Complexo da Penha [com 23 mortos, em maio de 2022]. Por que matam? Porque não param eles. Eles podem entrar [na favela], podem matar e fazer o que for porque sabem que, para eles, não dá nada [ou seja, nenhuma punição].”
Segundo Daniel Hirata, as chacinas não só continuam a ocorrer no Rio de Janeiro após a Candelária, como também passaram a ter perfil mais “oficial”.
“No caso da chacina da Candelária, assim como de Vigário Geral, Acari [em 1990], enfim nessas chacinas que marcaram os anos 90, nós tínhamos a atuação comprovada de policiais, mas atuando fora do horário de serviço, muitas vezes fazendo parte de grupos de extermínio, com viés de ‘limpeza social’. Tinham uma atuação extralegal. Com o passar do tempo, essas chacinas passaram a ser predominantes em operações policiais, avalizadas pelos poderes políticos e policiais”, explica o pesquisador.
Crianças e jovens
Márcia Gatto, representante do Movimento Candelária Nunca Mais e membro do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio, destaca que o estado tem uma política de segurança muito “agressiva e violenta”, que ocasiona não apenas chacinas, mas também a mortes de crianças e jovens, de forma isolada.
“Na verdade, a gente vive uma política homicida, em especial contra um segmento, que são os negros e pobres. É uma política de segurança pública que, aqui no Rio de Janeiro, é muito agressiva e violenta. É, de fato, uma política que não assegura direitos, mas está sempre violando os direitos, violando o direito à vida dessas pessoas”, afirma.
De acordo com o Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde, de 2012 a 2021, 1.368 crianças e jovens de até 19 anos foram mortos em “intervenções legais e operações de guerra” (nomenclatura do ministério para as mortes provocadas por agentes do Estado), no estado do Rio. Dentre essas vítimas, 50 tinham menos de 15 anos.
“Tem balas perdidas, crianças sendo mortas no caminho para a escola, dentro da escola. Isso é inconcebível. A desculpa é sempre que entram [na favela] para combater o tráfico e a violência nas favelas. Mas isso tem um resultado de que sempre morrem inocentes”, acrescenta Márcia.
Violência e abandono
A educadora Yvonne Bezerra de Mello trabalhava com as crianças e adolescentes em situação de rua na região da Candelária quando houve a chacina, em 1993. O projeto de educação mantido por ela na época evoluiu e se transformou na organização não governamental (ONG) Uerê, que é voltada para o ensino de crianças e adolescentes que têm bloqueios cognitivos e emocionais, devido à exposição constante a traumas e violência.
“A chacina da Candelária, mesmo tendo despertado atenção internacionalmente, não serviu para nada. Não serviu para os dirigentes pensarem e reformularem as políticas de segurança no país”, afirma Yvonne.
Segundo a educadora, as rotineiras incursões policiais nas favelas e periferias provocam não apenas mortes, mas também traumas nas crianças e adolescentes. “É absurdo que, apesar de termos leis muito boas, como o Estatuto [da Criança e do Adolescente, o ECA], você não cumpre esse estatuto e deixa que crianças cresçam de uma maneira muito negativa. As crianças não podem se desenvolver nesse ambiente de violência”, ressalta Yvonne. “A saúde mental de crianças e adolescentes está altamente comprometida no país.”
Yvonne chama a atenção para outro fato: a continuidade da existência de crianças e adolescentes vivendo nas ruas. Segundo ela, em 1993, na região da Candelária, vivia um grupo de mais de 70 pessoas em situação de rua.
“É um absurdo deixar um grupo desses se formar. E não foi por falta de aviso. Procurei prefeitinho do centro, autoridade, deputado e nunca ninguém deu a menor atenção. Só deram atenção, depois que aconteceu o massacre”, afirmou. “Ninguém dava a menor bola para aquelas crianças, como não dão até hoje. Isso não mudou também.”
Yvonne Bezerra de Mello não demonstra muito otimismo em relação aos próximos 30 anos. “Normalmente eu sou uma pessoa positiva, mas nesse sentido eu espero muito pouca coisa, porque, enquanto o sistema brasileiro não mudar sua forma de enxergar a realidade, vamos ter o mesmo problema eternamente.”
Respostas
Em nota, a Polícia Militar afirma que suas ações têm “como preocupação central a preservação de vidas e o cumprimento irrestrito da legislação em vigor”. A PM acrescentou que se pauta por informações do setor de inteligência e por planejamento prévio.
Também há ações de acompanhamento das famílias, com o objetivo de fazer a reinserção familiar e comunitária de crianças e jovens. A rede de acolhimento, segundo a secretaria, está espalhada pela cidade, de forma a garantir cobertura ampla em todo o município.
De acordo com a Secretaria de Assistência Social, de janeiro a junho do ano de 2023 foram realizados 2.907 acolhimentos na rede da prefeitura. Atualmente, encontram-se acolhidos 173 crianças e adolescentes. São 33,52% de crianças e 66,47% de adolescentes.
“Nos últimos 30 anos, muitas políticas públicas para este grupo foram implementadas, como o Estatuto da Criança e do Adolescente. Infelizmente, ainda temos casos de violência, seja em casa ou nas ruas. Temos que reconhecer que o trabalho feito está reduzindo essa ferida histórica, mas é importante dizer que a nossa meta é que não haja nenhuma criança ou adolescente com direitos violados”, afirmou o secretário municipal de Assistência Social, Adilson Pires.
Agência Brasil