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Ventres de planta: "Eu sou você" no Aterro do Flamengo

Dança Além das Fronteiras, Por Cláudio Serra, Professor do Departamento de Estética e Teoria do Teatro da UNIRIO

Em 26/10/2023 às 11:49:03

Mulheres “varrem” a pista do Aterro do Flamengo em um domingo lotado. Elas são um grupo de nove sobre a pista. Cabelos livres sobre as tramas de tricô, ou tear. As pessoas desviam, olham, comentam. Um menininho faz questão de passar algumas vezes de bicicleta e buzinar. Um cavaleirozinho. Ele buzina, passa pelo grupo, dá meia-volta com seu cavalo de rodas para passar por elas novamente, deixando claro, com sua buzina, que as mulheres atrapalham a passagem. Um pequeno macho fazendo barulho em meio às mulheres selvagens. Mas algo acontece. Ele paralisa e se põe a olhar. E ali fica muitos minutos. Desce da bike e não tira os olhos do coletivo de mulheres. Está fascinado. A partir desse momento, não são apenas mulheres: são bruxas.

Aterro: caos e acolhimento

Paul Zumthor, ao refletir sobre o acontecimento performático, dá um exemplo de sua infância: uma cantora de rua que, além de cantar, vende a letra das músicas em um papelzinho. Ele tenta resgatar o acontecimento, anos mais tarde, lendo o papel com a letra, mas pouco acontece. Bem resumidamente, ele chega à conclusão de que a performance não era apenas a letra, nem a imagem, ou a voz da cantora; mas todos os elementos que compunham aqueles instantes únicos: os outros espectadores, os passantes, o vento, a cor do céu de fim de tarde, o cheiro das comidas de rua, etc... Não posso, portanto, escrever sobre o acontecimento performático "Eu sou você", sem levar em consideração o contexto irrepetível em que estive. E a percepção da mulher como bruxa me veio, justamente, no começo da cena, com esse mini-espectador de bicicleta. A criança Paul Zumthor diante da mulher cantora, a criança-cavaleiro diante de nove bruxas.

No que diz respeito ao Aterro do Flamengo, muito sempre foi falado sobre o paisagismo (realmente genial) de Burle Marx e muito foi silenciado em relação à mulher idealizadora do projeto desse que é o maior parque urbano do Rio de Janeiro. O projeto do Aterro foi uma estratégia de defesa contra a especulação imobiliária enfurecida do pós Segunda Guerra. Um jardim gigante com uma diversidade gigante de espécies. Lota de Macedo Soares acolhe em seu jardim de “flores raras” o coletivo de nove bruxas.

Itinerância e chamamento

Elas se espalham em torno e embaixo de uma espécie de ficus, cujas raízes aparentes entram e saem do solo, como se o chão fosse líquido. Elas nos levam até os flamboyants laranjas e vermelhos e fazem um beat box com ritmo de funk. Elas cospem, gritam, gargalham e dançam. Toda essa primeira parte é mais dispersa e deve assim ser. É a itinerância, o chamamento, a ocupação do parque público. Ao mesmo tempo que elas cantam para Tupã, uma feira próxima, que nada tem a ver com a performance, toca nas alturas a marrom Alcione cantando "Gostoso Veneno". Enquanto duas performers deitam na grama e colocam a bunda para o alto, servindo de tambor para as companheiras baterem e cantarem, homens fazem um churrasquinho quase colados nelas. Sol Souza faz o parto de uma semente, a oferece a uma espectadora e lhe lambe o rosto. Um Jack Russel Terrier branco vem cheirá-las. A produtora Luciana Zule convence um carro branco a esperá-las saírem da pista “Não vai demorar”, promete. Tudo isso faz parte do acontecimento itinerante do domingo no parque.

Desse primeiro momento, destaco uma configuração espacial com o ficus, na qual Fernanda Sal veste uma máscara de grãos e folhas. Suas parceiras vão preenchendo o entorno a partir desse centro onde estão as raízes. Raízes expostas, entranhas expostas, é como um parto violento. Os galhos, folhas e essa disposição triangular das artistas, dão a impressão de carro alegórico, o que é potencializado pelo samba tocado na feira próxima.

Lógica empresarial x orgânica

Paradoxalmente, o momento de maior interferência das performers no espaço urbano é o que segue a essa primeira fase mais dispersa. Todos nós, participantes do acontecimento, nos fixamos ao pé de uma passarela de entrada do parque. Carol Gigante veste uma máscara com folhas. De um lado, nós, participantes-espectadores; do outro, um arranha-céu, qual seja, o número 200 da Praia do Flamengo. Diante daquele complexo empresarial, as nove mulheres já não são apenas bruxas, mas se tornam elementos da natureza. E esses elementos vão perdendo as forças até ficarem, um a um, estirados no piso da passarela.

Os problemas ambientais, e suas já concretas consequências, nunca estiveram tão presentes e isso faz dessa cena fixa em um mesmo espaço, uma energia contida, preenchida de movimentos nervosos e explosões. Essa dialética torna esse momento um acontecimento à parte: uma cena fixa, em um único lugar, com uma ponte dura e imóvel, um edifício duro e imóvel; mas com imagens que nos movimentam. Ali estamos falando de interferência e contágio. As artistas interferem na rigidez da paisagem e nós nos contaminamos pelas ideias das mulheres-plantas.

Com a passarela ocupada, três jovens mulheres que estavam entrando no Aterro pela ponte de acesso ficam paralisadas, sem saber se passam pelas artistas. Servem de pano de fundo para o espectador, que está do lado oposto ao delas. Três jovens prontas para um passeio dominical estão paradas diante de nove corpos de mulheres ao chão. Esses corpos são acordados pelo regador de Leona Kali, como plantas que voltam a viver. O público aplaude, cúmplice.


Gestantes de plantas

O terceiro e último estágio da performance se dá por meio da noção de coletividade. Juntamente com as artistas, descemos a pequena colina onde fica a passarela e nos encontramos num gramado a céu aberto, diante de um plano de fundo com árvores grandes, cipós e bastante sombra; quer dizer, imagens de umidade, organicidade, escuridão, útero.

O coletivo, mais uma vez, executa gestos de limpeza. Esse é o leitmotiv, os ramos ao chão, varrendo. São folhas de palmeiras balinesas que secaram e viraram palha, usadas como vassouras. Mas as mulheres-plantas estão modificadas: suas expressões gestuais e faciais de limpeza são bravas e amedrontadas. Elas se protegem do olhar do espectador, se cobrem. Natureza agredida. A maneira de se proteger é se unir. Formam um bloco de corpos e, uma vez mais, caem por terra.

Começam a produzir um vocalize com a boca fechada e esse som vai se transformando num canto de Oxum. Com essa música bem aquática, elas são, novamente, regadas e formam um grupo único, como um navio. Trazem mudas de plantas e se pintam com terra molhada tirada de um vaso. O ponto, agora com a lama, é para Nanã. Pensamos na origem do ser humano. Elas sorriem e se confraternizam. Entoam canto para Iemanjá. Um ventre feito de palha é colocado sobre a barriga de Amarilis Vitale. Desse ventre sai um fio verde, que, mais tarde, se torna vermelho. Esse cordão umbilical vai sendo amarrado aos espectadores e criando uma grande rede entre todos os participantes.

Eis o grande acontecimento final: não estamos sozinhos, não somos apenas indivíduos, somos seres coletivos. Ventres de palha são colocados sobre as barrigas de cada uma das mulheres-plantas e, dentro dos ventres, uma muda de planta. Gestantes de plantas.

Dança-teatro de Bali

Juntamente com cânticos para orixás, bem como palavras, gestos e objetos ritualísticos indígenas, trazidos sobretudo no corpo de Lúcia Tucuju, "Eu sou você" está calcado em técnicas da dança-teatro balinesa. Não conversei com Alegra Ceccarelli para entender em miúdos o diálogo entre essas manifestações culturais, porém os nove corpos femininos ocupando diferentes espaços do Aterro, confrontando o feminino com a natureza, remetem à epopeia hindu do Ramayana. Não apenas pelos inúmeros personagens que brotam na história, mas pela figura da vaca Kamadhenu, relativa à Mãe Terra, que, deitada, chora pelo sofrimento dos filhos.

Essa poesia épica em sânscrito fala, dentre tantos relatos, sobre o resgate de uma mulher sequestrada. Aqui, no Aterro, vemos a busca e a luta por corpos femininos violentados. Pela conexão com a natureza e com o mundo espiritual, esse feminino torna-se sagrado. Nos corpos das performers, vemos a base das pernas abertas bem assentada, o caminhar com a planta do pé bastante engajada, mãos e dedos expressivos, olhos bem abertos.

Antonin Artaud coloca em atrito os teatros oriental e ocidental. Ao primeiro, ele atribui tendências metafísicas. Ao segundo, tendências psicológicas. Aqui, o espectador entra em contato com um corpo mais gestual que se comunica pela energia, pelas materialidades que ultrapassam os limites do verbo e da palavra falada que, na tradição ocidental, é portadora de sentido. Esse teatro é mais dançado do que falado, mais encantatório do que explicativo.

Figurino

A estrutura do figurino é a trama, seja tricô, crochê, ou algum tipo de trama feita em tear. É o primeiro elemento que chega aos olhos do espectador. Para além dos fios de fibra natural apontarem para a questão ambiental, essas redes remetem ao coletivo, à necessidade de nos entendermos como parte de uma trama, entendermos o humano como mais um elemento da natureza.

Há, também, blusas em segunda-pele, com desenhos indígenas. Há contas, fios e guias relacionadas à cultura afrocentrada. Há tecidos inteiros formando saias manchadas.

É bastante interessante a fusão que se dá, por vezes, entre o corpo de uma das mulheres-plantas e o figurino. É o caso de Tatjana Vereza, cujo cabelo encaracolado se funde na trama do figurino. Seu cabelo natural acinzentado vai tomando os tons mais ruivos nas pontas, exatamente quando eles caem sobre os fios do figurino.

Diversidade

Não é possível falar sobre natureza sem corporificar sua diversidade. Dessa maneira, o elenco é formado por corpos muito diversos entre si. Há gerações diferentes, há origens étnicas plurais, há estruturas físicas que se chocam e se complementam.

Para além dessa diversidade orgânica e cultural, é interessante ver em cena a diversidade das atrizes, como ofício. As mais novas trazem certa imprecisão no olhar, certo frescor na interação com o público. Aquelas por volta dos 35 anos trazem técnicas cênicas, olhares focados, corpos mais domados. As mais velhas oferecem um jogo de atriz mais calmo, trazem o peso do corpo sem maquiagens, suas máscaras naturais esculpidas pelo tempo.

Eu sou você

Voltando ao acontecimento performático e todos os seus elementos concomitantes, no final, quando as performers cantam “Oreru Nhamandú Tupã Oreru”, as plantas nos ventres de palha são regadas. O canto vai tomando sons de parto, urros selvagens. As pernas abrem. Berros de parto. As plantas são paridas. O cordão umbilical vermelho é arrancado com vigor.

As plantas são oferecidas a pessoas que estão olhando. Cazul Coraya oferece a planta parida a uma senhora ao meu lado e faz um gesto de reverência. Um feminino saudando o outro.

Uma criança no colo do pai, um menininho, demonstra boa capacidade de abstração e pergunta: “Nasceu delas, ou é elas?”. Um ser tornando-se outro.

Ficha Técnica

Idealização e Direção artística: Allegra Ceccarelli

Performers: Allegra Ceccarelli, Amarilis Vitale, Carol Gigante, Cazul Coraya, Fernanda Sal, Leona Kali, Lúcia Tucujú, Sol Souza, Tatjana Vereza

Assistência direção: Fernanda Sal

Assistência de produção: Carol Gigante

Figurino e Adereços: Ticiana Passos

Adereços: Dafne Nass

Audiodescrição videoarte: Virgínia Barcellos

Interpretação em libras videoarte: Claudia Jacob

Contabilidade: Jopec Assessoria Contábil

Coordenação de Produção: Nely Coelho / Ginja Filmes & Produções

Produção executiva: Luciana Zule / Magalona Produções

Fomento à Cultura Carioca 2022 | Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (PCRJ) | Secretaria Municipal de Cultura (SMC)





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