A rede estadual do Rio de Janeiro tem 1.230 escolas, com 23 mil turmas e 678,2 mil estudantes, essencialmente do Ensino Médio.
Por que começo uma crítica teatral com esses dados?
Porque temos um espetáculo educacional, o qual sou apaixonada.
Aprender, para mim, sempre será um dos meus maiores prazeres. E faz muito tempo que não vejo um milagre - sim, um milagre! - que acontece até 30 de abril no Rio de Janeiro.
Eu não me lembro de ter visto tantos adolescentes num teatro como vi nessa peça. Isso encheu meu coração de alegria e esperança, não só do ponto de vista teatral, mas também em perceber quanto o NOSSO Museu Nacional tem importância, e ainda vive. E com essa plateia, certamente o museu vai continuar de pé!
Afinal são 678,2 mil estudantes que conhecerão de perto a história de um dos espaços mais importantes da nossa nação. Um lugar que perpetua nossa soberania.
Quando me refiro a soberania, me refiro à sua discrição literal, que quer dizer "propriedade ou qualidade que caracteriza o poder político supremo do Estado dentro do território nacional e em suas relações com outros Estados". É exatamente isso que o museu proporciona a nós brasileiros e aos nossos governantes.
Ao assistir à peça, como todo carioca, fui as lágrimas, lembrei-me dos meus tempos de menina, na Quinta da Boa Vista.
Lembrei da primeira vez que entrei naquele Museu, com a escadaria de mármore branca, lembrei também do assoalho de madeira que reclamava aos meus ouvidos o peso dos meus passos, e claro, daquele imenso meteoro que ficava na entrada. Acima dele, se bem me lembro, uma ossada de baleia, que infelizmente perdeu-se no incêndio, um acidente esperado por falta de cuidado de TODOS os governos que não deram ouvidos aos pedidos de socorro dos gestores públicos.
Isso era o que eu guardava em minha caixa de memórias de um passado iluminado pelo resplendor daqueles momentos que não voltarão. No entanto, ao assistir "Museu Nacional - Todas as Vozes do Fogo", tive a oportunidade de juntar tudo que vi ao que eu não fazia ideia, as histórias, entre elas a da própria construção do espaço físico.
“Quando da chegada da Família Real ao Brasil, em 1808, a Quinta pertencia ao traficante de pessoas negras (escravizados) Elias Antônio Lopes, que havia feito erguer, por volta de 1803, um casarão sobre uma colina, da qual se tinha uma boa vista da Baía de Guanabara – o que deu origem ao atual nome da Quinta.” (Wikipédia).
Sabemos que a Barca dos Corações Partidos é um coletivo de artistas potentes, carregados de musicalidade e concepções cênicas do mais alto nível. Mediante a todas essas características, tudo foi acrescentado com poesia, graça e política, como o bom teatro nos pode oferecer.
Se eu pudesse, juntaria algumas narrativas escritas e publicaria um livro. A Carta de Pero Vaz Caminha, a Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito, músicas de Chico Buarque e tantos outros documentos importantes. Juntaria a esses o texto deste espetáculo e fecharia com ele, pois trata–se de uma obra necessária, que conta a nossa história do passado à atualidade, com inteligência e um olhar futurístico, que nos leva a análises profundas.
A obra é de Vinícius Calderoni.
As músicas são de uma beleza ímpar, autorais. Inclusive, o percursionista Lucas dos Prazeres nos leva ao fogo, não só como personagem, mas também através do seu rugido, que vem de suas mãos em seus instrumentos de percussão. Ele é magnético.
Assim como Eduardo Rios, com seu sotaque nordestino, com sua voz potente, agracia nossos ouvidos. O artista é, sem sobra de dúvidas, um tesouro que o teatro guarda, completo, entre atuações, musicalidade e escritos.
São todos ótimos, mas também não posso deixar de mencionar o lirismo vocal de Adrén Alves, que garante ao espetáculo nobreza.
E o que falar de Ana Carbatti? A atriz abraçou Luzia, o fóssil humano mais antigo encontrado na América do Sul, com cerca de 12.500 a 13.000 anos, que reacendeu questionamentos acerca das teorias da origem do homem americano. O fóssil pertenceu a uma mulher que morreu entre seus 20 a 24 anos e foi considerado parte da primeira população humana que entrou no continente americano. Ana deu à personagem simpatia, força, talento, brasilidade e tudo mais que se pode imaginar. ela se apaga e se deixa em evidência. Luzia, com um tom de voz conquistador, leva o espetáculo com naturalidade, consciente da importância do seu papel no palco, sobretudo da importância do fóssil para a história, que também é do mundo.
O espetáculo aborda questões políticas com beleza e realidade. Nosso comportamento também. Afinal, o manifesto levado ao palco fala do Brasil e somos brasileiros, estamos embutidos nessa sociedade. É um bom momento para abrir as escutas e nos questionarmos quanto às nossas ações.
Quanto ao fogo, quanto ao incêndio, a tragédia anunciada. Quantas vezes o Museu Nacional pediu socorro para os governos? Quantos pedidos foram feitos, ao Governo Federal, de ajuda? INÚMEROS, e pasmem, NÃO ACOLHIDOS.
O personagem do fogo fala sobre suas atuações, é lembrado por queimar florestas, boates, edifícios, mas deixa claro que, através dele, progredimos também. Ele depende de nós, evidencia que o fogo não poder ser uma ameaça, porque temos como controlá-lo. Que abordagem rica!
A frase que irá perpetuar nos meus pensamentos: pergunte a um estrangeiro a importância de um hidrômetro em um museu? (ou algo semelhante)
Peço desculpas ao iluminador, cenógrafo, figurinista, por dessa vez não mencionar o trabalho deles, que ajuda a compor uma estética bela da obra assistida, mas ao olhar para o passado, o espetáculo, ressuscitou em mim a importância do Museu, que era detentor do maior acervo de história natural e antropologia da América Latina). Esse olhar foi muito além agora.
É muito complexo como o brasileiro se comporta diante da arte, do conhecimento, da ciência, da própria cultura. Em 2023, depois de 100 anos do maior movimento de artes do Brasil, a Semana de Arte Moderna, obras foram destruídas, obras que eram dos artistas desta importante semana. Isso realmente nos margeia como um povo subdesenvolvido em sua essência. Enquanto o Louvre arrecada milhões para seus cofres públicos, nós simplesmente o esvaziamos com nossa pobreza intelectual. Isso é uma vergonha! É preciso mudar concepções para melhores desdobramentos na cultura. Porque do jeito que anda, vamos continuar remando para a ilha do cocô!
Se tivéssemos aí uma política pública, abraçada à educação, este espetáculo seria patrocinado para todos os estudantes brasileiros! Digo mais do que já foi, pois sabemos que o teatro, para chegar aonde deve ir, fica impraticável sem um grande suporte do Estado.
Na minha utopia, eu gostaria de ver essa obra em estádios de futebol, grandes arenas, emissoras de TV, em cada estado brasileiro, para que todos soubessem da nossa importância. Aí sim, eu acreditaria em um Brasil promissor, incontestavelmente andando para frente!
O espetáculo apresenta a face do museu, o mecanismo de seus anos, pessoas que entram e saem dele, que se encontram, dos pesquisadores ao antigo funcionário público, tudo muitíssimo bem contado, com riqueza de detalhes. A obra dá vida às peças que ali estão, contando suas histórias, das asas da borboleta-azul ao esqueleto do Tapuiasaurur Macedoi, um dinossauro gigante e herbívoro de quase 12 metros de comprimento, que viveu há mais de 120 milhões de anos. Encenado por Eduardo Rios, que arranca risos da plateia!
Sei lá, mas essa obra deveria ser eternizada, mas não em uma crítica e sim nos palcos, nos livros, pois se trata de um favor a essa sociedade que precisa acordar, deixar essa dormência intelectual de lado, rever a grandeza do Brasil na íntegra!
Obrigada à Produtora Sarau, por acreditar em projetos que nos deixam aproximarmos de quem realmente somos e o que podemos ser!
Em 1925, o físico alemão Albert Einstein (de terno claro) visitou o Museu Nacional. Cientistas brasileiros de diversas áreas o acompanharam. A ocasião foi lembrada em maio de 2015, quando a direção do Museu Nacional comemorou os 90 anos da visita de um dos maiores nomes da história da ciência. Se essa informação não é suficiente, desisto! O espetáculo "Museu Nacional - Todas as Vozes do Fogo" capta essa essência; que educar é também uma das funções das artes cênicas!
Sinopse
"Museu Nacional: Todas as Vozes do Fogo", com a Barca dos Corações Partidos, é um estudo sobre como um país cultiva, armazena e conserva sua memória, com todas as implicações simbólicas e concretas que isso envolve.
Ficha Técnica
ELENCO
Adassa Martins
Adrén Alves
Alfredo Del-Penho
Aline Gonçalves
Ana Carbatti
Beto Lemos
Eduardo Rios
Felipe Frazão
Lucas dos Prazeres
Luiza Loroza
Rosa Peixoto
Ricca Barros
CRIATIVOS
Criação: Barca dos Corações Partidos e Vinicius Calderoni
Texto e direção: Vinicius Calderoni
Com a Cia Barca dos Corações Partidos – Adrén Alves, Alfredo Del-Penho, Beto Lemos, Eduardo Rios e Ricca Barros
Artistas convidados: Adassa Martins, Aline Gonçalves, Ana Carbatti, Felipe Frazão, Lucas dos Prazeres, Luiza Loroza e Rosa Peixoto
Direção musical: Alfredo Del-Penho e Beto Lemos
Música original: Adrén Alves, Alfredo Del-Penho, Beto Lemos, Lucas dos Prazeres, Ricca Barros e Vinicius Calderoni
Direção de produção e idealização: Andréa Alves
Direção de movimento e coreografia: Fabricio Licursi
Cenografia: André Cortez
Figurino: Kika Lopes e Rocio Moure
Iluminação: Wagner Antônio
Diretora assistente: Leticia Medella
Desenho de som: André Breda e Gabriel D’Angelo
Coordenação de produção: Rafael Lydio
Produção executiva: Rafael Fernandes
Instagram: @barcadoscoracoespartidos
Serviço
MUSEU NACIONAL - TODAS AS VOZES DO FOGO
Temporada | Até 30 de abril de 2023
No dia 29 de abril haverá sessão extra às 16h, além das regulares, às 20h
Dias e horários | quinta a sábado, às 20h / domingo, às 18h
Local | Teatro Riachuelo (Rua do Passeio, 38/40 – Centro)
Ingressos no site do teatro