Não importam os trabalhos anteriores da atriz Sirlea Aleixo ou sua formação acadêmica. Mesmo reconhecendo a grandeza da cientificidade para as artes cênicas. Não preciso procurar em quais palcos ela já esteve ou por quem já foi dirigida, quantos seguidores existem em suas redes sociais, nada disso nesse momento tem importância.
Eu quero falar do aqui, do agora, do que assisti no Teatro Municipal Sergio Porto. É para isso que estou parada na frente de uma tela, tentando encontrar palavras para escrever ao leitor, aos artistas, à companhia de teatro, uma referência crítica do agigantado espetáculo que assisti, para os próximos editais que este espetáculo irá participar.
Estou aqui para descrever uma atuação de mais alto nível, ao menos para mim, um divisor de águas, pois tenho certeza que, a partir de agora, fica mais complexo não almejar uma atuação colossal como essa, que julgo celestial, nos demais espetáculos que irei assistir. Traduzindo: o sarrafo está alto demais agora!
Estou aqui para criticar a obra "Furacão", que poderia ser resumida em perfeição. Penso que essa crítica deveria ter somente a palavra perfeição e um ponto final.
Mas Sirlea merece um afago. Essa atriz merece ser reconhecida através de um texto, este que será dividido entre os seus colegas, porque o teatro não se faz sozinho.
Fico a imaginar, quanto tempo de ensaio e repetição que Sileia passou para chegar a essa performance. Saibam que podemos compará-la com qualquer grande atriz do mundo. Eu vi uma artista arrebatadora, um furacão no sentido literal da palavra, uma atriz do teatro em plenitude, cuja atuação nos leva aos céus. Muitas vezes me questionei se era aquilo mesmo que eu estava assistindo…
A atriz e sua personagem me fizeram lembrar um búfalo, um animal que nem mesmo um leão atravessa o caminho. São duas mulheres que se encontram e que, juntas, demandam uma potência singular, pouco vista em um palco teatral.
As expressões faciais da atriz nos tomam, nos levam exatamente aonde o texto quer nos levar. Nos trazem sentimentos vivenciados pela personagem Joséphine Linc Steelson, abandonada como os demais negros em 2005, durante a passagem de um furacão.
Seus movimentos corporais são simplesmente um presente para a plateia, é com ela que sentimos o furacão Katrina. Incrível como ela nos leva a conhecer a fúria da natureza sem sairmos do lugar. Seu corpo se movimenta o tempo inteiro, como se não bastasse somente atuar como uma mulher de quase cem anos…
Quando Joséphine entra no ônibus, embora ele - o transporte - não estivesse no palco, a atriz Sileia nos faz enxergá-lo e senti-lo. Que maravilha de direção de movimento, que maravilha de atriz, pois em nenhum momento esqueceu sua atuação, que nos leva a um estado de graça!
É possível, através das suas expressões faciais, do seu olhar, encontrarmos os jacarés de Louisiana andando pelas ruas, como ela os descreve, após a passagem do Katrina.
Suas mãos, que tremem, sua coluna curvada, seu caminhar, um verdadeiro desaguar de assertividade de um corpo em cena!
Inclusive, oriento aos jovens artistas, aos estudantes das artes cênicas, assisti-la, porque eu não falo de uma performance qualquer, mas a melhor performance de 2023 até esta data. Uma aula ou, quem sabe, uma alucinação dos deuses do teatro. Sei lá…
Sua voz encaixou-se perfeitamente ao espetáculo.
Seus cabelos também atuam e trazem poesia, trazem verdade.
Os pulmões da atriz atuam. Cada expiração de ar serve para que sua personagem atue com a majestade necessária.
Sei que tive a oportunidade de um dia, lá no futuro, poder falar dessa obra, de dizer com muito orgulho: eu assisti!
Impossível Silea não ser indicada aos prêmios de teatro, no quesito de melhor atriz. Caso os jurados não enxerguem essa dádiva, fato que estamos diante de um jure insano.
Para Sileia chegar a essa atuação esplêndida, tiveram mãos que a orientaram, que lapidaram esse diamante!
Ana Teixeira e Stephane Brodt, que assinam figurino, cenário, direção e adaptação de texto. São duas joias, duas teatrólogas estimadas pelo público carioca. Mais que isso: uma referência teatral para muitos profissionais. Os colegas as reverenciam…
Uma adaptação perfeita, sem falhas. Obviamente, nota-se que não foi um trabalho fácil de se fazer. Trata-se de um texto denso e belíssimo. Nesse caso, deve ter demandado tempo para não mexer com sua intensidade e degraus de sensações. A cronologia exata, sem percalços desnecessários, um texto dramático, que qualquer falha poderia ter posto tudo a perder. Mas a sequência corre como um rio, ao encontro do mar, sem desvios. Um trabalho que merece ser mencionado, honrado!
Vi uma indumentária menos contemporânea, algo mais além do tempo. Principalmente pelo adorno na cabeça da protagonista. Mas que ficou muitíssimo bem. Os figurinos da atriz e os demais músicos estavam em concordância. Uma sofisticação, uma estética visual que nos leva a reconhecer a obra dessa companhia, que é impecável, sem arranhões…
Tudo em preto e branco, um verdadeiro luxo, e todas as demais palavras do dicionário que seguem nesse sentido.
Algumas vezes eu sentia estar no filme "Vidas Cruzadas", e outras vezes em "The United States vs. Billie Holiday". Tudo certo, tudo perfeito, a história do texto acontece nos Estados Unidos. Um primor…
Posso cometer um erro, mas percebi uma aproximação dos grandes clássicos hollywoodianos do Mississippi, Alabama e Louisiana. Uma coisa inimaginável!
Os sapatos gastos, a luva, os botões do vestido preto que Silea/personagem usava, a bolsinha que ela carregava. Tudo pensado, objetos de cenas bem-vindos…
Uma precisão que deve ser reconhecida, algo que somente quem sabe fazer, faz.
O cenário vem com um tom amadeirado, nada gritante. Muito pelo contrário, não há no cenário algo que contraste do visagismo que compõe um cenário equintado. A ambientação cênica de "Furacão" é inspirada no Preservation Hall Jazz Band, uma pequena casa de jazz em Nova Orleans que apresenta shows intimistas e acústicos da banda com o mesmo nome, local onde a diretora Ana Teixeira esteve repetidas vezes. Com janelas e paredes altas. Apenas paredes nuas, sem quadros ou cores que chamem atenção, tudo muito minuciosamente trabalhado, estudado, uma riqueza de detalhes, uma das características da companhia. Fui em busca do espaço na internet e percebi como a cenografia foi exata, assertiva.
Não há na companhia um defeito para ser apontado. Caso digam ao contrário, não acreditem!
A iluminação é do mestre dos magos Renato Machado, o guru da iluminação cênica. Tempestades e valorização dos personagens, dos músicos. Às vezes, tinha a impressão que eu estava em um clube de jazz! Era uma luz muitas vezes intimista, tímida, que contribuiu perfeitamente com o cenário!
A iluminação não era constante. Posso dizer que foi bem afinada, com a intensidade certa. A iluminação foi ponderada, exata, também sofisticada.
Quanto à direção artística, posso resumir em uma palavra: competência! É impossível não ver tudo que assisti como um resultado do trabalho de uma equipe em sua totalidade. Há em Amok uma responsabilidade que a consagra. É preciso que antes de levar ao público uma obra, essa seja vista, revista, questionada e, quanto a isso, eu não tenho dúvidas que tenha sido feito. A obra foi entregue ao público redonda, como uma joia desenhada.
Como uma fita métrica da existência do ser, mesmo que lúdico, mesmo que ficcional, Amok traz ao espetáculo uma sensação de verdade, de mergulho no tempo, porque foi exatamente isso que eles fizeram. Quanta beleza!
O Amok Teatro é um grupo fortemente representativo do teatro de pesquisa carioca e vem construindo, há 25 anos, uma trajetória consistente. Seu trabalho se caracteriza pela dedicação a um processo contínuo de pesquisa sobre a arte do ator e sobre as linguagens da cena. Dirigido por Ana Teixeira e Stephane Brodt, desde sua fundação, em 1998, o grupo tem recebido grande reconhecimento da crítica e do público e diversos prêmios do teatro, sendo considerada uma das companhias de maior prestígio da cena carioca contemporânea e com grande reconhecimento internacional. Em 2023, o Amok Teatro comemora 25 anos de trajetória. Seu propósito norteador de trabalho é pela busca de um rigor formal e por uma intensidade que se afirma no corpo do ator, como sendo o lugar em que o teatro acontece. Cada novo projeto impulsiona o grupo a procurar diferentes caminhos de pesquisa cênica e de treinamento para o ator a partir do diálogo com diferentes tradições e culturas. Os espetáculos do Amok tratam de temas contemporâneos, questões fundamentais de nossa época, sem perder de vista a busca de uma linguagem poética e a afirmação da cena como um espaço cerimonial. Para conhecer mais: https://www.amokteatro.com.br
A direção musical é assinada por Stephane Brodt, que foi gentil e nobre. As escolhas das músicas e versões próprias de clássicos como Pussycat Moan, de Katie Webster; O Death, de Ralph Stanley; Hard Times Killing Floor Blues, de Chris Thomas King; e Strange Fruit, de Abel Meeropol, são exatamente o que faz o espetáculo explodir, com acordes vibrantes. A partir da segunda quinzena de setembro, a trilha sonora do espetáculo vai estar disponível nas principais plataformas musicais de streaming.
Stephane abriu as cortinas para Taty Aleixo (atriz e cantora), Rudá Brauns e Anderson Ribeiro (músicos), que - como gatos sorrateiros - tiram do chão seus instrumentos. Não há ruídos em seus movimentos! Quanta gentileza há nesses artistas, que sejam louvados pelo trabalho que executam, que sejam referência de musicalidade no teatro.
A história de uma mulher próxima aos seus cem anos, abandonada pelo estado, junto a outros negros, não é uma história nova para nós, brasileiros.
Mas mesmo diante do descaso, o teatro não cala, o tempo passa, as covardias passam despercebidas no aqui e agora para muitos, mas o teatro não esquece, porque ele é feito de gente, de seres humanos que assumem a responsabilidade de cumprir a sua função, de educar e dizer que não aceitamos tais comportamentos pávidos dos governantes, seja onde e quando for.
No mesmo dia que fui assistir ao espetáculo, passei pela Livraria Travessa. Lá encontrei o livro que procuro há exatamente quatro anos: "Cartas Extraordinárias", que trazem cartas inesquecíveis de pessoas notáveis.
Em 1902, o jovem Franz Kappus escreveu a Rainer Maria Rilke, o influente poeta austríaco, pedindo que avaliasse a sua carta.
Meses depois chegou a resposta, essa que dedico a querida Sileia Aleixo:
“Não há maneira mais podre de abordar uma obra de arte que palavras de crítica: elas sempre se reduzem a mal-entendidos mais ou menos favoráveis. Nem tudo é tão compreensível ou tão exprimível como querem nos fazer acreditar; a maioria dos acontecimentos é inexprimível e tem lugar numa esfera em que jamais entrou uma palavra, e mais inexprimíveis que tudo, são as obras de arte, existências misteriosas, cuja vida perdura, enquanto a nossa acaba…
Cordialmente e com todo o apreço
Paty Lopes"
Obrigada, Cia AMOK, por sua dedicação à arte cênica, que é tão mal reconhecida nesse país. Obrigada por tamanho esmero e tempo que dedicam para nos agraciar com o melhor que há em vocês, artistas descomunais…
Sinopse
O espetáculo coloca em cena uma poderosa personagem feminina – uma espécie de griot estadunidense – trazendo um tema urgente: a situação dos excluídos diante das catástrofes climáticas que devastam o planeta.
No coração da tempestade, Joséphine Linc Steelson, “uma velha negra de quase cem anos” enfrenta a fúria da natureza. Uma mulher marcada pela segregação racial. Uma voz que ecoa como um grito na cidade inundada e abandonada à própria sorte. A trama segue a trajetória desta mulher cuja história poderia ser também a história de tantas mulheres brasileiras.
A peça fala sobre o Katrina, sobre suas vítimas e sobre os que sobreviveram, mas fala sobretudo sobre o peso da desigualdade em
momentos de tragédia. Uma narrativa que mistura a gravidade do trágico com a doçura da fábula, para exaltar a beleza comovente daqueles que, apesar de tudo, permanecem de pé.
Ficha Técnica
Espetáculo: "Furacão"
Texto: Laurent Gaudé
Direção e adaptação: Ana Teixeira e Stephane Brodt
Elenco: Sirlea Aleixo (atriz), Taty Aleixo (atriz e cantora), Rudá Brauns e Anderson Ribeiro (músicos)
Iluminação: Renato Machado
Direção musical: Stephane Brodt
Criação e produção musical: Rudá Brauns e Anderson Ribeiro
Cenário e figurino: Ana Teixeira e Stephane Brodt
Operador de luz: João Gaspary
Cenotécnico: Beto de Almeida
Confecção de figurinos: Ateliê das Meninas
Direção de produção: Sonia Dantas
Produção executiva: Gabriel Garcia
Assistente de produção: Lucas Petitdemange
Serviço
"Furacão"
Temporada: Até 27 de agosto de 2023.
Local: Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto
Rua Humaitá, 163, Humaitá, Rio de Janeiro
Telefone para informações: 21 2535-3846
Dias e horários: de quarta a sábado, às 20h, e domingos, às 19h.
Sessão extra: Dia 5 de agosto, sábado, às 17h.
Ingressos: R$30 e R$15
Duração: 70 minutos
Classificação: 12 anos
Circulação com apresentações de "Furacão" e oficinas de “Treinamento e Improvisação”
Dia 8 de setembro, sexta-feira
Local: Arena Carioca Fernando Torres
Rua Bernardino de Andrade, 200, Madureira, Rio de Janeiro
Telefone para informações: 21 3496-0372
Apresentação do espetáculo "Furacão", às 18h.
Com debate após a apresentação.
Programação gratuita.
Dia 10 de setembro, domingo
Local: Arena Carioca Dicró
Rua Flora Lôbo, s/nº, Penha Circular - Parque Ari Barroso - Rio de Janeiro
Telefone para informações: 21 3486-7643
Apresentação do espetáculo "Furacão", às 18h
Oficina “Treinamento Improvisação”, das 14h as 18h.
Programação gratuita.
Dia 11 de setembro, segunda-feira
Local: Museu da Maré
Av. Guilherme Maxwel, 26, Maré, Rio de Janeiro
Telefone para informações: 21 3868-6748
Apresentação do espetáculo "Furacão", às 19h.
Oficina “Treinamento Improvisação”, das 14h as 18h.
Programação gratuita.
18 a 22 de setembro, segunda à sexta
Local: Casa do Amok Teatro
Rua das Palmeiras, 96, Botafogo, Rio de Janeiro
Telefone para informações: 21 2543-4111
Oficina “Treinamento Improvisação”, das 9h30 as 12h30
Programação gratuita.