Muito antes de Cabral, antes de descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade, assim cantava o poeta Oswald de Andrade. Não desacredito do verso!
Terra Desce é o novo espetáculo Daquela Cia. O mais interessante é que, sempre quando vamos assistir algo deles, já nos preparamos para algo incomum. Mas, mesmo assim, quando assistimos ao espetáculo, somos surpreendidos com uma obra qual jamais esperaríamos. Essa é uma das características do coletivo, um teatro diferente, será que poderia dizer "contemporâneo"? Sim, usam ferramentas para isso acontecer, com uma linguagem de hoje!
Existe uma força nessa companhia que é surreal! Eles são o resultado de muita pesquisa, de aprofundamentos nos saberes, há uma eloquência peculiar do dramaturgo. Saímos ressuscitados do teatro com tantas novas informações, uma forma ímpar de trazer do passado nossas histórias, as que tentam apagar.
Terra Desce é um espetáculo que corre em nossas veias, nos fazendo entender um pouco de nós mesmos.
É possível entender todo o espetáculo, se ficarmos atentos. Não é uma obra na qual nos transformamos em capivaras culturais, apenas piscando os olhos, sem nenhuma emoção, por não entender o propósito da montagem. Só que mais uma vez, oriento, ficar atento ao espetáculo e ler a sinopse contribuem para o entendimento da concepção dos artistas.
A obra revela nossa história, inclusive nossa economia esdrúxula em economizar registros, principalmente das mulheres do povo originário dessa terra. Nos fazendo entender, por exemplo, o presente, esse machismo que nos cerca atualmente.
Podemos mencionar alguns nomes quando falamos das indígenas do Brasil. Catarina Paraguaçú (1503), por exemplo, conhecida como uma das mães do povo brasileiro. Casou-se com Caramuru (português). A indígena foi importante na ligação entre as culturas, indígena e portuguesa.
Moema, irmã de Paraguaçú, uma de suas netas, casou-se com João, um dos sobrinhos do poeta Luis de Camões.
Ana de Faria (1778), indígena, filha de casal de indígenas catequizados, viveu no Ceará. Também foi catequizada, era a bisavó do famoso Padre Cícero, de Juazeiro do Norte.
Clara Felipa Camarão (XVII), indígena Potiguar, ativista de guerra, expulsou os holandeses da cidade de Olinda, em Recife.
Todas são pouco mencionadas em nossa história, mas saibam que não faltam nomes e feitos para contarmos a respeito delas. São inúmeras...
E agora mais uma: uma indígena Maracajá, essa que estava às margens da Baía de Guanabara. Mãe do primeiro carioca mestiço. O nome dela? Também não sabemos.
“As águas correm mansamente onde o leito é mais profundo.” (William Shakespeare)
Dedico essa frase ao querido dramaturgo Pedro Kosovski. Pedro é realmente um homem do teatro. Ele tem feito a sua história, marcado o seu lugar, que se eternizará. Lá, no futuro, muitos irão falar das suas obras, principalmente ao que se refere ao teatro brasileiro de nossa época, desse presente que vivemos, que amanhã será o futuro. O dramaturgo parece viver sobre águas tranquilas. É o que podemos sentir através da sua voz, por exemplo. Penso que seus gritos, sua não aceitação, deságua na escrita, que sempre se apresenta com pujanças nos seus textos.
É possível enxergar as entranhas do Pedro em suas obras, porque há uma imensidão em cada ponto, em cada vírgula, em cada narrativa que ele atribui ao personagem.
Pedro esclarece que sua dramaturgia é compartilhada com os artistas, cada um apresenta olhares acolhidos por ele.
O texto começa falando sobre deslocamento. É exatamente isso que fazemos o tempo inteiro no espetáculo: vamos de um lugar ao outro, de sensações a sensações e de um tempo ao outro. Alguns risos e alguns abismamentos.
Um texto vivo e dinâmico, que não incomoda o espectador.
O espetáculo apresenta a história de Joãozinho, filho do português João Lopes com uma indígena, nos primórdios da colonização do Rio. Com começo, meio e fim, impossível sentir-se perdido quanto à entrega do texto.
A dramaturgia permeia entre a performance de Joãozinho e João Lopes e também entre dois artistas que discutem suas atuações no espetáculo a ser montado, em uma estrada de anos…
A iluminação tem rubrica do mago Renato Machado, que dispensa comentários. Tem certos profissionais do teatro, como Renato, que já não cabem palavras. Renato é um deles. O desenho de luz é perfeito, não nos faz agonizar em momento nenhum.
Renato conta com as mãos fortes do Mauricio, que também aperfeiçoa o que já é perfeito. Incongruente essa frase, mas é exatamente isso!
No ato final, um laser é trazido ao palco, dando uma ideia futurista, o que combina bem com a companhia. Incrível!
O trabalho de Fernanda Garcia surpreende. Ela usa objetos de cena e alguns peças de roupas para construir os personagens, o que chama muito a atenção. É impossível não ver os personagens no palco. Ela mergulha na sobriedade, mas de forma alguma apaga a competência de trazer ao palco as verdades dos personagens. As cores que ela utiliza para construção dos figurinos e objetos são belíssimas. Fernanda nos leva aos quadros históricos. O colar elisabetiano do João Lopes e a boina utilizada pelo Joãozinho identificam cada personagem! Quando eu crescer, quero ser como Fernanda: do pouco, saber fazer muito!
A trilha sonora parece não desvirtuar da característica da companhia: sempre acordes mais fortes, sem suavidade. Mas, desta vez, Felipe Storino rasga o véu e traz um indígena ao palco, que nos faz sonhar, nos faz imaginar o Brasil de mais de quinhentos anos atrás. Um som legítimo. Segue o meu "muito obrigada" por esse momento, pois foi onde vi o meu povo originário. Foi de extremo bom gosto essa escolha. O músico Xainã, indígena do Pará, merece estar nesse lugar, que fala muito através da música. Sem palavras para traduzir a emoção em ouvir os sopros e os cantos.
Se falamos do povo originário, que mandem os fados para o inferno e que ressoem as nossas músicas, bradem alto nossas notas.
Aurora dos Campos e Marco André Nunes trouxeram alguns animais esculpidos e bancos onde os artistas conversavam e contracenavam. A iluminação ajudou a dar a visibilidade a cada símbolo, que também orquestra a estética visual do espetáculo. Paira, na frente dos nossos olhos, a cultura indígena, uma sensação de um Brasil in natura.
Agora vamos à sofisticação do espetáculo: os artistas.
Rayna. É dela a frase “uma vez originário, para sempre originário”, frase que guardarei comigo para sempre. A atriz indígena trouxe sensualidade para o palco. Ela não vem com roupas que remetem a isso, mas sim, é uma mulher brasileira, com curvas, mas que ainda não é dessa sensualidade que falo.
“Ali andavam entre eles [índios] três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.”
As indígenas se revelam especiais ao primeiro olhar e foram intensas as menções a elas na carta de Pero Vaz. É a beleza da mulher brasileira que atravessa o tempo e até os dias atuais chama a atenção do mundo.
Fica antevisto como a colonização portuguesa se dará no Brasil, em duplo jogo de poder: de um lado a força do domínio do conquistador europeu; de outro, a irresistível sensualidade tropical de nossas indígenas que, seduzindo o conquistador, conquista-o para enredá-lo na trama da hereditariedade mestiça fundadora da nação. E, daí, tema do espetáculo Terra Desce.
Ranya é interlocutora da peça. Eu mesma, em minha ignorância, a vi como uma inteligência artificial. Mas não, é mais que isso: o espetáculo fala sobre inteligência ancestral, o centro de como tudo começou e até hoje habita em nós. Uma performance legítima, bela e contundente!
Fica em evidência que ela sabe a importância da sua presença no palco, a sua importância nessa obra, pois a encarna sem leviandade. Muito pelo contrário, vem firme nos passos e encerra sua encenação com louvor, mostrando o tamanho da força da sua personagem, da sua ancestralidade.
Guida. Uma vez assisti ao espetáculo onde ela atuava com vários artistas, mas era somente ela que eu via naquele palco. E, dessa vez, essa atriz brinca de ser realeza. A dona Guida dá vida ao Joãozinho. Muitas vezes, eu não sabia se aquilo era verdade, seus movimentos eram perfeitos. Toda vez que falarem desse mestiço, ela virá à minha cabeça. Tenho certeza disso!
Como o texto se desloca de um passado colonial ao ensaio de dois artistas amigos de profissão, em uma das suas narrativas, a atriz explica a função da arte, tão educadora em sua vida. A palavra "encantamento" ressurge em nós, quando, em um debate com seu colega de palco, a atriz aborda questionamentos que são atuais: a questão da sua miscigenação.
Através das artes, principalmente das artes cênicas, é possível aprender quem somos. E fico imaginando a atriz, com tantos anos nessa estrada, o quanto ela tem a revelar, o quanto aprendeu. Meu saber transformou-se em pó diante de suas falas, o quanto ela carrega, tudo isso devido à sua profissão, que lhe presenteia saberes incalculáveis.
Guida Viana, seu público te reverencia por isso e por tanto…
Ricardo Kosovski. A última vez que o vi, foi no Sesc ao vivo, durante o inferno da pandemia. E não mudou muito, ele tem um estilo peculiar de fazer teatro.
Ricardo vem como João Lopes, o desgraçado da história, bicho ruim, que não valia nada! Não posso dar spoiller. No entanto, já sabemos que português aqui não serviu para muita coisa, somente para ensinar o que era miséria. O pior foi o que fez ao próprio filho, mas também não vou contar! Ricardo apresenta movimentos corporais lindíssimos e uma força no palco que impressiona. Ele e Guida são amigos de palco há muitos anos, celebram essa amizade atuando. Os seus papéis falam sobre o teatro, sobre o fazer teatro. Em uma das cenas, um debate que já mencionei, mais uma vez tornam-se icônicos para nós, seus fãs. Ricardo e Guida protagonizam suas próprias histórias, falam de quantos colegas passaram e subiram na vida, atingiram o sucesso, e que, agora, estão sem contratos ou os contratos foram encerrados, e todos volta à mesma situação. Mas eles, dentro dessa nova realidade dos artistas, ganham pontos. Por quê? Porque estão acostumados com a vida de artista do teatro brasileiro.
A plateia inteira gargalha.
Ricardo é ótimo, se joga sem medo de errar, isso é o que sentimos.
Terra Desce é uma obra diferente, que educa e desnuda nossa história.
“À véspera da Colonização havia um vasto contingente populacional, espalhado pelo continente, apresentando diferentes forma de articulação social, econômica e politica, em escala regional e local. A chegada de Cabral até agora chancela as mordaças postas nos indígenas desse país, dando aos demais o protagonismo, de maneira a apagar a história dos Tupiniquins, Guaranis, Tupinambás, Caiapós, Pataxós, Carajás e muitos outros. A história não é estática, senhores!”
O pior disso tudo é saber mais de Cabral do que dessa mulher que deu à luz a Joãozinho, o começo da minha história. Hoje sei que Cabral era um rapaz formoso que ganhou muito dinheiro para atravessar o Atlântico, e nada sabemos da mulher que gerou o primeiro mestiço no Rio de Janeiro, a cidade onde nasci.
Mas agora sei, através do teatro, que esse povo, que se diz carioca, que em tupi quer dizer: casa de branco, tem mais sangue indígena do que pode imaginar.
Valeu muito a pena ter ido ao teatro nesse dia!
Aguyjevete!
Sinopse
A história de Terra Desce acompanha o marinheiro português João Lopes, exilado no Brasil como punição por traficar machados para indígenas e considerado um traidor dos europeus. Ele estabelece contato com a aldeia Maracajá, na Ilha do Governador, e se relaciona com uma indígena, com a qual tem um filho. Este fato é considerado o primeiro registro de mestiçagem entre um homem europeu e uma indígena.
Ficha Técnica
Direção: Marco André Nunes
Texto: Pedro Kosovski
Elenco: Guida Vianna, Ricardo Kosovski e Raynna
Músico: Xainã
Direção Musical: Felipe Storino
Cenário: Aurora dos Campos e Marco André Nunes
Figurino: Fernanda Garcia
Iluminação: Renato Machado
Diretora Assistente: Carolina Lavigne
Direção de Movimento: Paula Águas e Toni Rodrigues
Produção Executiva: Thaís Venitt e Isadora Frucchi
Direção de Produção: Gabi Goncalves
Realização: Aquela Cia e Corpo Rastreado
Serviço
Terra Desce
Até 17 de setembro – De quinta a domingo – às 20:00
Teatro Futuros – R. Dois de Dezembro, 63 – Flamengo, Rio de Janeiro
Ingressos: R$ 60,00 (inteira) / R$ 30,00 (meia)