Uma das coisas que mais admiro é a linguagem que alcança a todos, quando a dramaturgia atende aos intelectuais e aos não intelectuais. Isso faz com que a acessibilidade do entendimento chegue a qualquer um de nós. E este autor parece entender bem do que falo.
O texto é leve, divertido e com reflexões belíssimas. Ruy Guerra adaptou o Dom Quixote de Cervantes para o ”Dom Quixote de Lugar Nenhum”
Penso que cada um de nós carrega um pouco desse personagem, que tenta desfazer injustiças e corre ao encontro dos sonhos. Talvez também, por isso, temos essa literatura eternizada, já que é o segundo livro mais vendido do mundo. Que aterrissou no Brasil e pousou no cerrado de Ruy! Que maravilha!
Eu jamais imaginaria fazer uma ponte entre Dom Quixote e um retirante nordestino. Este espetáculo abriu essa porta. Quantos nordestinos saíram a procura de um sonho? E mataram e matam dragões, e verdadeiros gigantes, na dura batalha da sobrevivência?
Isso sem contar que o Dom Quixote é de uma cidade semi árida também, como o nosso sertão, Castela-La Mancha.
A ideia de trazer a literatura de Cervantes ao Nordeste foi de ótimo gosto, pois não podemos ser analfabetos mundiais. No entanto, jamais devemos perder a nossa essência. Se é para vir de fora, que venha, mas que chegue bordada com as nossas características, sempre respeitando a legitimidade das obras originais.
Antes de abrir as cortinas, fazedores de teatro e seus instrumentos se encontram para contar uma história, trazer ao palco a beleza do teatro mambembe. O que achei fantástico: o teatro apresentando as suas diversas formas.
Quando o cenário é apresentado, ficamos embasbacados. Tudo muito belo, colorido e bem iluminado. Assinado por João Uchoa, que apostou na suntuosidade e acertou!
Como falar em Nordeste sem mencionar o sol? Impossível! Nesse caso, ele está muito bem evidenciado. Uma imensa roda está no centro do palco. Junto à iluminação, nos leva a cenas estonteantes, sendo hora sol ou lua - do sertão, que também é conhecida por seu encantamento.
No chão, um tapete redondo nas cores preto e branco, que traz a ideia do oroboro, usado como representação da criação do universo e de tudo aquilo tido como eterno e infinito, através da cobra comendo o próprio rabo, evidenciando algo que não tem começo, não tem fim. A obra de Cervantes parece está bem inclusa nessa representação, nesse olhar.
Uma estética visual demasiadamente contemporânea, pode-se dizer moderna, que se junta aos figurinos barrocos. O expressionismo evidenciado nas indumentárias, coisas do Farjalla, outro que não poupa em elegância!
Essa criação do sol me lembrou muito o grande artista Olafur Eliasson, islandês-dinamarquês, conhecido e reconhecido mundialmente por empregar materiais elementares como luz, água e temperatura do ar para aprimorar a experiência do espectador. As sensações não cabem nessa montagem, mas as imagens visuais, que são imensas, sim. Isso me faz perceber o quanto o teatro brasileiro tem profissionais com imensas habilidades em suas execuções.
Uma rampa de madeira também compõe o cenário, evidenciando algumas narrativas importantes. Mais que isso, colocando o personagem da literatura mundial em um plano merecido.
No segundo ato, ao abrir as cortinas, as bandeirinhas juninas estão lá, o que penso ser fantástico. Nada caracteriza mais o Nordeste que a maior festa deles, a de São João! A festa junina é Patrimônio Imaterial do Nordeste! Excelente ideia!
Nessa obra não cabe esquecer de mencionar o desenho de luz de Samuel Betz e Eduardo Dantas, além do operador de som Gabriel D’Angelo. A iluminação casou-se com o cenário divinamente. Já o som, obviamente com todo o equipamento de alto nível, apresenta vozes limpas, sem ruídos, e traz alguns efeitos sonoros muito bem colocados. É possível, por exemplo, ouvir as pegadas dos gigantes, mediante um stéreo muito bem executado.
Já os figurinos são assinados pelo também diretor Jorge Farjalla. O que dizer desse profissional? Que Exu abre seus caminhos, pois sua devoção não é em vão. Parece que uma força guia seus passos. Sabemos que o profissional tem a cientificidade em seu currículo. No entanto, seus feitos vão mais além: é algo majestoso demais. Para explicar, somente recorrendo ao mundo espiritual.
Para falar de Nordeste é preciso mergulhar nessa cultura, que é legitimamente brasileira. Não vi falhas quanto a isso.
Farjalla é elegante, mergulhou em Picasso, no quadro La Famille de Saltimbanque. “As palhetas das cores estão todas lá”, segundo depoimento do próprio Jorge. Mas ele também entendeu que sua concepção não podia estar somente atrelada à Europa e soube trazer ao Medieval, época cervantina, os elementos que também permeiam os artesanatos nordestinos, debruçando-se sobre as rendas e cordas de algodão que traçaram os figurinos, o que entendemos como coisas da região "mode lá de cima"... (risos). Uma belezura de cores e identidade, que não o comprometeu com o erro. Inclusive, os objetos de cena também atuam nessa direção. O chifre do diabo, por exemplo, me levou ao clássico Auto da Compadecida, o mesmo utilizado por Luiz Mello. Mesmo sem influência, o figurinista relata que o Auto acaba ficando em nós, nem que seja por osmose mental. Ainda bem, afinal Ariano é nosso, é nossa cultura, é brasileiríssimo, e merece estar intrínseco nos brasileiros, fazedores ou não de cultura. Simples assim!
Quanto à direção, não vi espaços vazios e falta de dinâmica. Muito pelo contrário, ri e, em nenhum momento, consegui me desconectar das encenações também.
As letras compostas no musical são do divino Zeca Baleiro, nordestino, um artista que representa muito bem a Música Popular Brasileira. Zeca já tem história com o teatro, foi homenageado merecidamente na obra da Clarice Niskier, “Esperança na Caixa de Chicletes Ping Pong".
Detalhe que, quando Zeca foi convidado para este projeto, mesmo antes de saber se daria certo ou não, aceitou e começou a compor!
Os arranjos musicais são lindíssimos, e muito bem instrumentados pelos artistas no palco, da rabeca a zabumba!
Confesso que não sou muito fã de musicais cantados o tempo inteiro, gosto quando há texto, pois este garante mais entendimento do espetáculo para mim. E essa obra compartilha canções e narrativas.
Agora vamos aos astros dessa obra...
Lucas Leto, o Dom Quixote, é magnífico. O moço é de Salvador/BA. Embora jovem, trouxe um Dom Quixote cansado da sua busca pela donzela Dulcinéia. Todo o seu enfrentamento era seguido de quedas. Ao levantar, um barulho de lata velha realizado pelo som da rabeca se ouvia, tipo o homem de lata do Mágico de Oz, se ajustando. Ficou excelente! Seus movimentos são chamativos, assim como o sotaque nordestino. Caíram muito bem! Texto na ponta da língua, vale muito lembrar que o espetáculo não é curto! E ele narra seu texto com emoção, o que é bem diferente de somente falar. Há nele uma perspicácia de nos fazer mergulhar em suas palavras.
Danilo Moura roubou meu coração! Que ator gostoso de se assistir, que coisa mais afortunada é poder ir ao teatro e ter a oportunidade de ver uma arte tão bela de um artista! Ele vem como Sancho Pança e desnuda a cultura nordestina através das palavras. É de ficar arrepiado! No entanto, o arrepio não chega, pois ele não deixa. O artista mergulha no humor também. Às vezes, parece que o personagem tinha sido feito para ele!
Sabe, tem talentos que ficam tão marcados que penso: o tempo pode passar, mas o artista fica ali, registrado em nossas memórias com seus feitos refinados. É o caso do Danilo!
Quando ele fala sobre a gastronomia nordestina fica tudo tão divertido! Além de deixar a plateia com água na boca, também nos faz mostrar nossos sorrisos.
Ele e Claudia Ohana apresentam uma cena inesquecível, onde a atriz faz a encenação de uma personagem horrorosa. Ela o faz tão bem que a vimos como uma mulher realmente sem atrativos. Danilo Moura, toda vez que dialoga com ela, faz cenas de ânsias de vômitos e a plateia toda do teatro se entrega a ele. Ele brinca de ser artista cômico. Que delícia de cenas, absurdamente fantásticas.
Claudia Ohana me surpreendeu com seu tom de voz. Em alguns momentos, o seu suntuoso figurino se prendia à bota que ela usava, e ela ia desfazendo das situações de maneira tão performática que passou a impressão que a situação fazia parte do espetáculo. Ela, como demônio, também está excelente! Pareceu não querer aparecer mais que ninguém, está inserida no grupo, são uniformes.
Daniel Carneiro é o artista que nos encanta com a rabeca, um instrumento popular. Juntamente com a viola, é tradicional dos cantadores nordestinos. Belíssimo trabalho.
Du Machado não é de Deus, ou é? Aliás, ele é um homem ou o cavalo de Dom Quixote? As expressões corporais desse ator chegam em nós nos impactando. Ele é simplesmente um presente para o espectador. A comicidade o acompanha, como uma sombra. Que trabalho lindo! Fico a imaginar o tanto de ensaio que teve esse artista para ficar como ficou! Mas o que interessa é o resultado. E disso não se pode falar, porque ficou enfeitiçador. Atentem que até as onomatopeias chegam.
Paloma Ronai parece ter nascida no meio de uma orquestra, dona de uma musicalidade prodigiosa. Além da sanfona, se não me engano o pífano, também é tocado. “O pífano é um instrumento tradicional do Nordeste do Brasil. Seus tocadores, na maioria, são pessoas sem erudição que transmitem a cultura do pífano pela tradição oral – tanto a confecção quanto o repertório, que em geral dispensa partitura, sendo tocado de ouvido. No Nordeste, ainda se encontram as tradicionais bandas de pífanos"
Posso dizer que adorei tudo que assisti. Será que fiquei atenta do início ao fim por ser filha de nordestinos? Por entender dessa cultura tão bem? Pode ser, mas isso não seria suficiente, isso é um fato, o que me leva a dizer que o espetáculo é bom. A reação da plateia: riu e aplaudiu, assim como eu!
O bom texto e o excelente desempenho dos artistas no palco também chancelam a beleza da montagem. Alguém melhor que Farjalla para essa execução? Segundo a idealizadora e produtora, ela não podia encontrar outro tão bom quanto, e eu concordo!
Falando sobre a querida Simone Kontraluz, segue do Portal Eu, Rio! o nosso "muito obrigado" por ouvir nossos questionamentos, de ter aberto as suas escutas educadamente, não recebendo as críticas de maneira rude, mas sim grata e nos dando todo suporte para passarmos para o público todo o olhar dessa montagem. Assim como o diretor Jorge Farjalla, que também, muito alegre, respondia com entusiasmo nossa colunista.
Que todos alcancem essa forma plena de tentar combater os diferentes olhares, não mostrando destempero e, acima de tudo, tendo maturidade. Afinal, vivemos na época das fake news. Parabéns a ambos!
Parabenizo também aos patrocinadores, a Vale Instituto Cultural pelo olhar, por reverenciar e oportunizar a reverberação da nossa cultura, que é bela, belíssima! Viva o Brasil!
O espetáculo é vivo e, embora sentados em uma cadeira, sentimos que estamos no mesmo movimento, pois em nós o coração pulsa junto a este espetáculo de veias tradicionais brasileiras. Um xero!
Sinopse
A história se passa na província de Mancha, na Espanha, e conta sobre Alano Quixano, um fidalgo espanhol que, após ler diversas histórias de cavaleiros medievais, acaba confundindo a realidade com a fantasia e decide ser tornar cavaleiro. Acreditando em seus delírios, sai de casa visando andar pelo mundo, desfazendo injustiças, salvando donzelas e combatendo gigantes e dragões.
Ficha Técnica
Idealização: Simone Kontraluz
Texto: Ruy Guerra
Direção e encenação: Jorge Farjalla
Assistente de direção: Andrea Dantas
Músicas: Ruy Guerra e Zeca Baleiro
Direção Musical: Lui Coimbra
Elenco: Lucas Leto, Danilo Moura, Claudia Ohana, Dani Fontan, Jana Figarella, André Rosa, Daniel Carneiro, Du Machado, Paloma Ronai, Caio Menck
Cenário: João Uchoa
Figurinos e adereços: Jorge Farjalla
Assistente de figurino: Joana Seibel
Desenho de luz: Samuel Betz e Eduardo Dantas
Preparação Vocal: Suely Mesquita
Preparação corporal: Jorge Farjalla
Som: Gabriel D’angelo
Caracterização: Joana Seibel
Ilustrações: Pally Siqueira
Direção de Produção: Valéria Macedo
Realização: Graviola Produções
Curadoria: Simone Kontraluz
Serviço
Data: Até 23/07/2023
Local: Teatro Casa Grande
Endereço: Avenida Afrânio de Melo Franco, 290 – Loja A- Leblon — Rio de Janeiro/RJ
Horário: Quinta a Sábado às 20h | Domingo às 18h
Abertura da casa: 1h antes do evento
Classificação: 12 anos. Menores a partir de 10 anos entram acompanhados dos pais ou responsáveis. Crianças de até 1 ano e 11 meses possuem gratuidade permanecendo no colo do responsável.